terça-feira, maio 27, 2008

O Brasil nunca pertenceu aos índios

Sandra Cavalcanti

Quem quiser se escandalizar, que se escandalize. Quero proclamar, do fundo da alma, que sinto muito orgulho de ser brasileira. Não posso aceitar a tese de que nada tenho a comemorar nestes quinhentos anos. Não agüento mais a impostura dessas suspeitíssimas ONGs estrangeiras, dessa ala atrasada da CNBB e dessas derrotadas lideranças nacional-socialistas que estão fazendo surgir no Brasil um inédito sentimento de preconceito racial.

Para começo de conversa, o mundo, naquela manhã de 22 de abril de 1500, era completamente outro. Quando a poderosa esquadra do almirante português ancorou naquele imenso território, encontrou silvícolas em plena idade da pedra lascada. Nenhum deles tinha noção de nação ou país. Não existia o Brasil.

Os atuais compêndios de história do Brasil informam, sem muita base, que a população indígena andava por volta de cinco milhões. No correr dos anos seguintes, segundo os documentos que foram conservados, foram identificadas mais de duzentos e cinqüenta tribos diferentes. Falando mais de 190 línguas diferentes. Não eram dialetos de uma mesma língua. Eram idiomas próprios,
que impediam as tribos de se entenderem entre si. Portanto, Cabral não conquistou um país. Cabral não invadiu uma nação. Cabral apenas descobriu um pedaço novo do planeta Terra e, em nome do rei, dele tomou posse.

O vocabulário dos atuais compêndios não usa a palavra tribo. Eles adotam a denominação implantada por dezenas de ONGs que se espalham pela Amazônia, sustentadas misteriosamente por países europeus. Só se fala em nações indígenas.

Existe uma intenção solerte e venenosa por trás disso. Segundo alguns integrantes dessas ONGs, ligados à ONU, essas nações deveriam ter assento nas assembléias mundiais, de forma independente. Dá para entender, não? É o olho na nossa Amazônia. Se o Brasil aceitar a idéia de que, dentro dele, existem outras nações, lá se foi a nossa unidade.

Nos debates da Constituinte de 88, eles bem que tentaram, de forma ardilosa, fazer a troca das palavras. Mas ninguém estava dormindo de touca e a Carta Magna ficou com a palavra tribo. Nação, só a brasileira.

De repente, os festejos dos 500 anos do Descobrimento viraram um pedido de desculpas aos índios. Viraram um ato de guerra. Viraram a invasão de um país. Viraram a conquista de uma nação. Viraram a perda de uma grande civilização.

De repente, somos todos levados a ficar constrangidos. Coitadinhos dos índios! Que maldade! Que absurdo, esse negócio de sair pelos mares, descobrindo novas terras e novas gentes. Pela visão da CNBB, da CUT, do MST, dos nacional-socialistas e das ONGs européias, naquela tarde radiosa de abril teve início uma verdadeira catástrofe.

Um grupo de brancos teve a audácia de atravessar os mares e se instalar por aqui. Teve e audácia de acreditar que irradiava a fé cristã. Teve a audácia de querer ensinar a plantar e a colher. Teve a audácia de ensinar que não se deve fazer churrasco dos seus semelhantes. Teve a audácia de garantir a vida de aleijados e idosos. Teve a audácia de ensinar a cantar e a escrever. Teve a audácia de pregar a paz e a bondade. Teve a audácia de evangelizar.

Mais tarde, vieram os negros. Depois, levas e levas de europeus e orientais. Graças a eles somos hoje uma nação grande, livre, alegre, aberta para o mundo, paraíso da mestiçagem. Ninguém, em nosso país pode sofrer discriminação por motivo de raça ou credo.

Portanto, vamos parar com essa paranóia de discriminar em favor dos índios. Para o Brasil, o índio é tão brasileiro quanto o negro, o mulato, o branco e o amarelo. Nas nossas veias correm todos esses sangues. Não somos uma nação indígena. Somos a nação brasileira.

Não sinto qualquer obrigação de pedir desculpas aos índios, nas festas do Descobrimento. Muitos índios hoje andam de avião, usam óculos, são donos de sesmarias, possuem estações de rádio e TV e até COBRAM pedágio para estradas que passam em suas magníficas reservas. De bigode e celular na mão, eles negociam madeira no exterior. Esses índios são cidadãos brasileiros, nem melhores nem piores. Uns são pobres. Outros são ricos. Todos têm, como nós, os mesmos direitos e deveres. Se começarem a querer ter mais direitos do que deveres, isso tem que acabar.

O Brasil é nosso. Não é dos índios. Nunca foi.

segunda-feira, maio 12, 2008

Provocação

A quem interessa a radicalização dos conflitos em Rondônia, na Raposa Serra do Sol? O Supremo Tribunal Federal arrogou para si a decisão final, que deve intervir nas próximas semanas. Decidiu também pela manutenção do status quo. Sustou, portanto, a retirada dos não-índios e dos índios que são seus aliados. O que aconteceu? Um grupo de indígenas invadiu uma das fazendas em litígio, com um discurso de "ocupação", que terminou suscitando uma reação, certamente desmedida, porém reação a uma ação que deveria ter sido impedida pela Polícia Federal lá presente.

O mais surpreendente é que a atuação policial foi rápida na prisão dos que reagiram à invasão e ausente no que diz respeito aos invasores. Afinal, aguarda-se ou não uma decisão do Supremo? Ou se trata de desrespeitar a mais alta Corte do país, sob o manto de uma suposta legalidade? Quando a Polícia Federal chegou à região, cena do confronto com os arrozeiros, efetuou a desobstrução de rodovias que tinham sido ocupadas pelos manifestantes. Agiu de acordo com a lei, pois rodovias públicas não podem ser ocupadas. O que ocorre agora? Os indígenas ocupam rodovias e nada é feito. Num caso é contrário à lei e, noutro, não. Dois pesos e duas medidas são a melhor forma de desrespeito ao estado de direito.

Convém aqui ressaltar o papel desempenhado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), pastoral da Igreja Católica. Observemos que os indígenas têm sido objeto de uma destruição cultural, levada a cabo por grupos religiosos de diferentes proveniências. Refiro-me à destruição das religiosidades nativas. O assunto não é nem tema de discussão, quando, historicamente, se trata - ou pelo menos se tratava - de uma das mais importantes questões antropológicas. Há aqui um completo silêncio, como se este fosse extremamente comprometedor para aqueles que dizem, no entanto, defender a cultura indígena.

Ora, a política desse setor da Igreja é ancorada em posições esquerdizantes, utilizando todo um linguajar, que tem como objeto a implantação do socialismo autoritário entre nós. Em nome da justiça social, as posições cristãs são progressivamente abandonadas, culminando numa outra conversão, a do marxismo como redenção dos povos. O seu vocabulário é revelador. Num documento recente da Cimi Norte I, de 2 de maio, é afirmado, a propósito dos conflitos em Roraima, que o problema central reside na "ditadura do mercado sobre o direito dos cidadãos".

Não deixa de ser curiosa essa mensagem religiosa, simplesmente retirada do arsenal dos dogmas comunistas, totalmente falsos. Lá onde o mercado se desenvolveu, com regras e instituições, a democracia representativa se afirmou, produzindo direitos sociais, civis e políticos. Exemplos não faltam: Inglaterra, países nórdicos, França, Alemanha, EUA. Lá onde o mercado foi abolido, a pobreza foi generalizada, os direitos sindicais e políticos abolidos, e a política se tornou a perseguição e eliminação dos próprios cidadãos. Exemplos não faltam: União Soviética, Camboja, Cuba, entre outros.

Nesta perspectiva, a sua luta precisa de símbolos, símbolos que captem a opinião pública, tendo como objeto infletir a política governamental e influir diretamente junto ao STF. Estranhamente, silvícolas "fotografaram" o acontecido, como se o seu propósito fosse precisamente este: agir sobre a opinião pública. Mártires são necessários para esta concepção teológico-política. O sangue e a morte são os seus instrumentos. O seu objetivo, na invasão, consistia em suscitar uma reação, armada, pois ela viabilizaria o avanço de sua "causa". Os que reagiram com armas de fogo terminaram fortalecendo a política que procuram contestar.

A Comissão Pastoral da Terra, em um livro que é utilizado pelo MST, "Cantos, cantando com a Mãe Terra", de 2003, sustenta claramente essa posição: "Companheiros de jornada/dessa longa caminhada,/vamos falar um pouquinho/dessa história que é formada/com luta, sofrimento/com sangue que é derramado/daqueles que dão as mãos/aos companheiros massacrados". Segue esse outro canto: "Acorda América, chegou a hora de levantar!/O sangue dos mártires/ fez a semente se espalhar". Ou ainda: "Os nossos mártires, irmãos de sangue, são as sementes da caminhada". Para o abismo, certamente!

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

sexta-feira, maio 09, 2008

Esses caras são bandidos?

Augusto de Franco, Folha de S. Paulo (04/04/08)

Há ou não há um padrão? E que padrão é esse senão o do bando que não respeita limites quando estão em jogo seus interesses?

A TRAMA se desenrola no meio político, dominado por uma turma da pesada, cujo chefe mafioso é muito bem-visto pela população em virtude de suas obras de caridade. Mas eis que um investigador de polícia descobre evidências de um crime cometido pelos poderosos. No início, ninguém acredita. Ele é até punido pelo chefe. Mas insiste em puxar o fio. A história vai parar nas mãos de um jornalista corajoso que publica a matéria. Então a coisa toda desmorona. E a população, afinal, enxerga a verdade: os caras eram bandidos.

Há dezenas de filmes assim, exatamente com o mesmo argumento. São quase um lugar-comum em Hollywood. Mas não estamos assistindo a um desses batidos filmes policiais americanos. Estamos no Brasil de 2008, em plena "Era Lula", em que de nada adianta a publicação -nem de uma, nem de cem evidências- de crimes cometidos pelo governo.

Todavia, aqui seria possível concluir que os caras são bandidos?

No nosso mundo real, a turma da pesada é do PT. Mas, curiosamente, o PT tem menos bandidos -no sentido criminal do termo- do que a maioria dos outros partidos brasileiros.

Entretanto, no sentido social da palavra -aquele sentido a que se referia Eric Hobsbawm no interessante ensaio que publicou no final dos anos 70 sobre os "Rebeldes Primitivos"-, não há como fazer nenhuma comparação: o PT é um partido de bandidos.

Calma lá, litigantes de má-fé! Com isso não quero dizer que a maioria, uma parte ou todos os filiados e militantes do PT são bandidos (no sentido criminal do termo). Quero dizer que o PT é presidido por uma lógica ou uma racionalidade própria dos bandos. E que não é à toa que tenha se formado a partir do movimento sindical.

Sim, o sindicalismo, sobretudo se partidarizado, é uma forma branda de banditismo: subordina o sentido público ao interesse particular de uma corporação e não mede conseqüências para prover a satisfação de um grupo privado em detrimento do bem-estar geral. É exatamente o que o PT, como bando, faz: privatiza partidariamente a esfera pública.

Na nossa política, claro, há de tudo, inclusive bandidos comuns (embora sejam minoria), bandos locais ou regionais (ou "caciquias", às vezes coronelistas, montadas em torno de pessoas e famílias) e bandos políticos (formados com base em uma causa).

Os dois primeiros tipos são endêmicos na velha política brasileira. O terceiro só emergiu, em toda sua plenitude, com a vitória eleitoral de Lula.

A democracia convive com todas essas formas de banditismo, da criminal à social, ora fazendo valer a lei, ora gerando consensos sobre o que é ou não é socialmente aceitável.

O problema existe quando as coisas se misturam e um bando social, chegando ao poder, se alia a bandidos comuns (no sentido criminal) e às "caciquias" tradicionais clientelistas, instaurando outro tipo de banditismo: o de Estado, que tanto pode cometer crimes no varejo (sob o perigosíssimo manto da impunidade) quanto perverter a política e degenerar as instituições no atacado. É a via Putin. Contra essa eventualidade, porém, a democracia não tem proteção eficaz.

Não se retira o direito do PT de constituir-se como um bando social a partir de uma causa, mesmo que essa causa seja -na verdade- apenas ficar no poder o maior tempo possível.

O problema é que, ao montar aparatos ilegais de poder na própria Presidência da República, esse pessoal "atravessou o corguinho" (como se diz lá no interior de Minas).

Para ficar só nos megaescândalos, o caso Waldomiro-Dirceu foi a primeira evidência. O mensalão, a segunda. A quebra do sigilo do caseiro Francenildo, a terceira. A produção do falso dossiê contra Serra, urdida por homens da cozinha do presidente, a quarta. E agora veio a quinta: a investigação, sem nenhuma denúncia ou fato determinado, dos gastos oficiais com Ruth e Fernando Henrique Cardoso para produzir um novo dossiê com o qual o governo pretendia chantagear a oposição ou impedir que ela requeresse legalmente a investigação das -aqui, sim, fartas- evidências de uso criminoso dos cartões corporativos da Presidência por familiares ou auxiliares diretos de Lula.

Há ou não há um padrão? E que padrão pode ser esse senão o do bando que não respeita limites quando estão em jogo seus interesses?

As oposições permitiram que chegássemos a esse ponto e que se instalasse o banditismo de Estado no Brasil. Foram deixando a coisa avançar, imaginando que os caras eram "players" normais do jogo político. Como se vê, não são.

AUGUSTO DE FRANCO, 57, analista político, é autor, entre outras obras, de "Alfabetização Democrática". Foi conselheiro e membro do Comitê Executivo da Comunidade Solidária durante o governo FHC (1995-2002).