quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Cora Rónai (O Globo 21/02)

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Eu não sou a Petrobras. Eu não tenho nada secreto no notebook. Ainda assim, ele é protegido por um sistema em que a senha é a digital do meu indicador — e não há hipótese, mas não mesmo, de que eu venha a embarcá-lo em qualquer mala despachada, no mesmo avião e sem escalas. Ele vai na bolsa, ali, do meu lado, coladinho. Nunca viajei com disco rígido com dados, mas, caso o fizesse, seria nas mesmas condições.

É bem provável que a proteção do Vaio seja só para inglês ver, e que qualquer um seja capaz de abri-la; mas, para isso, primeiro seria preciso roubá-lo de mim. Também é claro que, se eu tivesse dados que valem ouro no computador, o meu disco inteiro seria muito bem criptografado. E é claro, ainda, que eu teria um sistema de segurança adicional por hardware.

O fato é que, hoje em dia, sem tiroteios, assassinatos ou, no mínimo, um boa-noite-cinderela, só se rouba notebook com dados confidenciais de quem deliberadamente se deixa roubar. O que deixa algumas curiosas possibilidades em aberto: 1) Não havia nada nos notebooks (se é que havia mesmo notebooks), e o “roubo” foi uma cortina de fumaça para distrair a atenção do público do caso dos cartões corporativos; 2) Havia dados nos notebooks, “roubados” de antemão para justificar um vazamento de informações que apenas ainda não foi descoberto pela imprensa; 3) Havia ou não havia dados, tanto faz, e os notebooks foram roubados porque estavam, literalmente, dando sopa, e sendo tratados com a incúria e o descaso com que, neste país, se trata tradicionalmente a coisa pública.

Se as minhas hipóteses estão erradas, e se havia mesmo “segredos de Estado” nos notebooks, como quer fazer crer o presidente que foi para o frio, este governo, e os prepostos com que está aparelhando o país, de alto a baixo, são ainda mais incompetentes do que parecem. Para ficar num exemplo até infantil, qualquer pessoa que vá com razoável freqüência ao cinema já cansou de ver agentes algemados aos seus computadores. Mandar “segredo de Estado” por contêiner é coisa dos Três Patetas. Ou dos 40 ladrões.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Segredo de Estado

Miriam Leitão

O mercadinho La Palma, a casa de carnes Reisman, a loja de vinhos Wine Company, a peixaria Golfinho e a padaria Cirandinha de Brasília são detentoras de informações que, se divulgadas, ameaçam o Brasil. Houve um tempo em que os militares achavam que risco à segurança nacional era tudo que fosse contra o regime. Hoje, segurança nacional é invocada para encobrir extravagâncias da Presidência.

Nunca se saberá no Brasil, pelo visto, o que é realmente segurança nacional. A Amazônia devastada, a violência urbana, a persistência do analfabetismo que ainda hoje flagela três milhões de jovens, a ocupação de parte do território do Rio pelo tráfico de drogas, nada disso ameaça a pátria brasileira. Os que exercem o poder têm interpretações exóticas sobre o tema. No passado, achavam que a ameaça vinha do pensamento divergente. Era uma idéia absurda. Hoje acham que ameaçador é informar os gastos com cartões feitos pelos funcionários que servem ao presidente da República e a seus filhos. E a interpretação é um escárnio.

Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, autor do saudoso "Festival de Besteiras que Assola o País - Febeapá", não teria muito trabalho no Brasil de hoje para encontrar as sandices políticas que alimentavam seu humor. Bastaria conferir, por exemplo, o que disse o Planalto sobre os R$ 205 mil gastos por três funcionários em guloseimas e bebidas caras para alimentar o presidente e seus convidados, nos momentos não previstos nas compras normais da cozinha presidencial. Segundo o Planalto, a divulgação dessas informações "pode facilitar atos de terrorismo".

Pede-se a ministra Marta Suplicy que vá ao Planalto e repita ao Gabinete de Segurança Institucional e à Casa Civil, responsáveis por essa interpretação, o que ela disse na Europa, quando se falou que no Brasil havia muita violência e por isso não era um país seguro. "Pelo menos lá não tem terrorismo", gabou-se. Talvez a ministra tenha relaxado um pouco prematuramente.

A convicção da Presidência é que, se, um ano depois, os gastos com comes e bebes presidenciais forem divulgados, se saberá quantas pessoas estão envolvidas, e isso é que facilitaria atos de terrorismo.

Ameaça também a segurança nacional saber que um dos seguranças de Lurian, a filha do presidente, gastou R$ 55 mil em cartões, uma média de R$ 6 mil por mês.

A Presidência está sob constante risco e ameaça. Dos quase R$ 5 milhões gastos pela Presidência em cartões corporativos em 2006, só R$ 100 mil tinham nota fiscal porque o resto, segundo o Planalto informou ao Tribunal de Contas da União, era de despesas cuja divulgação ameaça a segurança nacional.

Mas podem os brasileiros dormir tranqüilos porque todas essas ameaças estarão conjuradas, em breve, pelos nossos bravos defensores da segurança nacional. O Gabinete de Segurança Institucional já informou que a divulgação dos gastos pelo portal da Transparência foi uma "transgressão" e que os responsáveis pela divulgação responderão a processos administrativos". A assessoria de imprensa do Planalto também já avisou que não comentará os gastos do funcionário de Lurian, porque não comenta nada que ameace a segurança do presidente e sua família.

Quando estourou o escândalo da ex-ministra Matilde Ribeiro, o governou anunciou que, em resposta, aumentaria o uso dos cartões, mas limitando os saques em dinheiro vivo, que, só no ano passado, foram de R$ 4 milhões, feitos pelos que usam o cartão de crédito pago com o dinheiro dos contribuintes. O ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Hage, afirmou que o risco era o uso do cartão para fraudar a Lei de Licitações. Mais uma de suas costumeiras confusões de interpretação.

O pior problema, que, até agora, ninguém do governo deu mostras de ter entendido, é o abusivo desrespeito ao limite entre o público e o privado. O mesmo desrespeito que se viu em outros flagrantes deste governo, como o do episódio em que um filho do presidente convidou os amigos para, a bordo de um avião da FAB, irem para Brasília, onde usaram o Palácio do Alvorada como colônia de férias. Na época, a imprensa perguntou se realmente havia sido usado o avião da Força Aérea Brasileira para transportar os jovens em seus folguedos de férias, e o Planalto se negou a dar a informação. Mas os próprios jovens, ao divulgarem na internet a foto de todos ao lado do avião, deixaram claro o flagrante de uso privado de recursos públicos. Matilde, quando admitiu apenas "um erro administrativo", mostrou também que não entendeu o que há de errado em usar o cartão pago pelos contribuintes até em dias de folga.

Os gastos com cartão corporativo estão tendo um aumento explosivo - 800% nos últimos cinco anos, chegando a R$ 75 milhões - e o governo quer ampliá-los. A divulgação dos gastos feitos por funcionários da Presidência foi considerada um atentado à segurança nacional, e os responsáveis serão punidos. O erro não foi o gasto, o erro foi divulgá-lo. E o Portal da Transparência fica assim avisado de que a máxima Delúbio Soares - "transparência demais é burrice" - impregnou todo o governo.

sábado, fevereiro 09, 2008

Psiu. Recebeu Marcos Valério?

Diogo Mainard

"Há algo que caracteriza tanto os encontros secretos
na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha:
a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.
Ninguém pode conferir se ele recebeu Valério na Granja do
Torto. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Planalto,
sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo"

Ninguém perguntou diretamente a Lula se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Eu pergunto:

– Psiu. Recebeu Marcos Valério na Granja do Torto?

Duas semanas atrás, Delúbio Soares foi interrogado. O defensor de Marcos Valério encaminhou-lhe algumas perguntas. Numa delas, ele insinuou que seu cliente teria acompanhado Delúbio Soares à Granja do Torto, para encontrar-se com Lula. De acordo com o Ministério Público, isso só pode ser interpretado como um recado de Marcos Valério à turminha do PT. E o recado é o seguinte: cuidado, porque eu posso entregar o presidente da República.

– Psiu. Como foi o encontro com Delúbio Soares e Marcos Valério na Granja do Torto?

O assunto já ficou caduco. Os mensaleiros fazem parte do passado. Agora a gente quer ser informado sobre as compras na padaria Cirandinha pagas com o Ourocard presidencial, um caso que promete animar a segunda metade do mandato lulista, assim como os mensaleiros animaram a primeira. Entretanto, há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha: a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente. Ninguém pode conferir se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Isso significa também que ninguém poderia saber se ele está sendo chantageado ou achacado por causa desse encontro. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Palácio do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo. A rigor, nada impediria que os membros do governo tivessem sacado dinheiro vivo para financiar atividades da campanha eleitoral, inclusive o dossiê dos sanguessugas.

– Psiu. Psiu. PSIU. Como é o pastel da padaria Cirandinha?

Lula está perto da aposentadoria. Eu já consigo imaginá-lo daqui a alguns anos, em sua cobertura no ABC paulista, num dia qualquer. Acorda. Liga a TV. Desliga a TV. Chega a pedicure. Come dois pratos de estrogonofe. Demite a empregada doméstica. Desmonta o aparelho de ar condicionado. É incapaz de remontá-lo. Dá os retoques finais em seu tratado sobre o atomismo de Demócrito. Compra uma grelha antiaderente por telefone. Come dois pratos de nhoque. Mergulha de trampolim em sua piscina cheia de moedinhas. Demite o motorista. Chega Delúbio Soares. Despede-se de Delúbio Soares. Olha o que acontece nos apartamentos vizinhos com um telescópio. Dorme no sofá.

Apesar de Lula estar chegando ao fim, ainda dá para transformar a última fase de seu mandato em algo proveitoso. Se a imprensa o atazanar e se o Ministério Público perseguir os abusos de seu governo, talvez seu sucessor seja um tantinho mais contido. É uma hipótese remota, mas é uma hipótese. Lula está perto da aposentadoria. E eu estou perto de me aposentar dele. Quando tudo acabar, quero comprar uma grelha antiaderente por telefone.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Fantasioso? Sórdido?

Diogo Mainard

No Natal de 2005, recebi documentos sobre um pagamento de 3,25 milhões de reais da Telecom Italia a Naji Nahas. Tudo ali era suspeito. Um: o pagamento fora efetuado em dinheiro vivo. Dois: o carro-forte entregara o dinheiro na sede da Telecom Italia, em vez de entregá-lo diretamente a Naji Nahas. Três: Naji Nahas faturara 263.000 reais a mais do que o previsto em seu contrato de consultoria.

Passei toda a papelada a VEJA, que publicou uma reportagem sobre o assunto, seguindo o rastro daqueles 3,25 milhões de reais. A reportagem, baseada em fontes da própria Telecom Italia, dizia que o dinheiro fora entregue a um diretor da empresa, Ludgero Pattaro. Ele o enfiara numa maleta e, acompanhado por guarda-costas, encaminhara-se ao hotel Renaissance, onde o repassara a um destinatário de identidade desconhecida. Numa coluna publicada ao lado da reportagem, contei os bastidores do acordo secreto entre a Telecom Italia e o lulismo, sugerindo que aquele dinheiro teria sido usado para azeitar o relacionamento da empresa com o poder político.

O presidente da Telecom Italia, Giorgio Della Seta, classificou as denúncias de VEJA como "absurdas, fantasiosas e sórdidas". Ele afirmou ignorar o que Ludgero Pattaro fazia no hotel Renaissance com uma maleta cheia de dinheiro. Naji Nahas também contestou a reportagem, declarando ter recebido regularmente em seu escritório o valor de 3,25 milhões de reais. O caso parecia morto. Eu parecia absurdo, fantasioso e sórdido.

No Natal de 2007, ocorreu uma reviravolta. Recebi de presente mais um documento. Ele consta do inquérito da magistratura milanesa contra a Telecom Italia e confirma integralmente o que VEJA publicou dois anos atrás. Trata-se de um depoimento de Marco Girardi, diretor financeiro da Telecom Italia no Brasil, realizado no dia 11 de novembro passado. Ele confessou o seguinte:

• Giorgio Della Seta, aquele das denúncias "absurdas, fantasiosas e sórdidas", amigo de Lula e de Marta Suplicy, mandou-o preparar um pacote com 1,3 milhão de dólares em dinheiro vivo.

• Um carro-forte fez a entrega de 3,25 milhões de reais na sede da Telecom Italia. Ali mesmo, um cambista trocou os reais por dólares.

• Os dólares foram entregues a Ludgero Pattaro, assessor direto de Giorgio Della Seta. Ele acondicionou o dinheiro em pacotes de diferentes valores, enfiou-o numa maleta e dirigiu-se ao hotel Renaissance, repassando-o a algumas pessoas que Marco Girardi nunca vira.

• Alguns dias depois, Giorgio Della Seta mandou o diretor financeiro entregar mais 406.000 reais a Ludgero Pattaro, para um pagamento análogo.

Mas a história é ainda mais enlameada. Outro diretor da Telecom Italia, Marco Bonera, admitiu em juízo ter transportado 300.000 dólares a Brasília, para recompensar um grupo de deputados federais. A leitura da confissão de Marco Girardi mostra que aqueles 300 000 dólares, adiantados pela Pirelli como "despesas de viagem", fazem parte da transação com Naji Nahas.

Até 2006, a Telecom Italia foi a grande aliada do lulismo na batalha pelo espólio da Brasil Telecom. Um espólio que está para ser cedido à Telemar, por meio de um decreto presidencial. Ludgero Pattaro, o homem da maleta cheia de dólares, é candidato a uma das vagas no conselho consultivo da Anatel, que analisará o negócio. Absurdo? Fantasioso? Sórdido? Sim, tudo isso.