sexta-feira, dezembro 28, 2007

Ficamos mais bestiais

Diogo Mainard

Luiz Moyses perdeu a mulher na tragédia da TAM. Na tragédia do Aeroporto de Congonhas. Na tragédia do Airbus. Na tragédia da Anac. Na tragédia da Infraero. Na tragédia de Lula. Chame do jeito que quiser.

Luiz Moyses era de Porto Alegre. Depois do acidente, a TAM o acomodou no Hotel Blue Tree, em Moema, perto de Congonhas. Em 31 de agosto de 2007, à noite, ele estava no bar do hotel, acompanhado por dois outros familiares de vítimas do Airbus. No mesmo dia, ocorrera a abertura do III Congresso Nacional do PT. Mais de 150 delegados do partido também estavam hospedados no Hotel Blue Tree. O PT sempre se deu bem com o Hotel Blue Tree. Um dos delegados petistas foi confraternizar com Luiz Moyses, imaginando que ele fosse um correligionário. Luiz Moyses repeliu-o dizendo que Lula era o culpado pela morte de sua mulher. O delegado petista tentou agredi-lo. Insultou-o. Disse que os parentes dos mortos da TAM estavam chorando demais. O agressor só foi contido pelo deputado baiano Joseph Bandeira e pelos guarda-costas do partido.

O próprio Luiz Moyses relatou-me o episódio alguns meses atrás. Nesta semana, à procura de uma imagem que sintetizasse o ano, lembrei-me dele. Mais do que pelo acidente de Congonhas, 2007 ficará marcado pela bestialidade que deflagrou. Da alegria indecente de Lula na posse de Nelson Jobim ao top, top, top de Marco Aurélio Garcia quando o Jornal Nacional falou sobre o reversor pifado, o Brasil desceu mais uns degrauzinhos na escala de civilidade.

Em 2005 e 2006, o conflito foi entre lulistas e antilulistas, entre achacadores e achacados, entre quadrilheiros de um bando e de outro. 2007 foi pior: o conflito passou a ser mais essencial, mais primário, entre a selvageria e a humanidade. Os fatos do Hotel Blue Tree resumem idealmente o que aconteceu no país nos últimos tempos. Num artigo pomposo como este, em que se analisa o passado em busca de ensinamentos para o futuro, cai bem citar um autor ilustre.

É kitsch, mas cai bem. Pensando em Lula, em Marco Aurélio Garcia e no agressor de Luiz Moyses, cito o autor mais manjado de todos, Samuel Johnson: "A piedade não é natural ao homem. Crianças são sempre cruéis. Selvagens são sempre cruéis. A piedade é adquirida e aperfeiçoada pelo cultivo da razão".

A mulher de Luiz Moyses chamava-se Nádia. Foi sua primeira namorada. Eram casados havia sete anos. Quando Nádia morreu, Luiz Moyses vendeu sua empresa e mudou-se de Porto Alegre. Atualmente, ele tenta reconstruir sua vida em outro lugar, ao mesmo tempo que coordena as atividades do grupo de parentes dos 199 mortos de Congonhas. Chegou a ser recebido por Lula no Palácio do Planalto. Perguntou o motivo do descaso do governo com a segurança nos aeroportos. Lula respondeu, segundo ele, que "o povo brasileiro nunca pediu segurança, pediu que modernizássemos os terminais". Lula teria acrescentado que o Brasil "possui os melhores terminais do mundo, com shopping center e tudo o mais".

O ano acabou. A tragédia da TAM ficou para trás. Menos para Luiz Moyses e todas as pessoas que perderam parentes ou amigos. Eles continuam a buscar respostas para os acontecimentos daquele fim de tarde de julho. Reúnem-se, confortam-se, trocam mensagens. A última suspeita que circula entre eles é que o piloto do Airbus teria pedido autorização para aterrissar no Aeroporto de Guarulhos, mas tivera seu pedido negado pelos controladores. Em 2007, o Brasil pediu para aterrissar numa pista longa e segura, mas acabou numa pista incerta e escorregadia, "com shopping center e tudo o mais".

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Fim da metamorfose

Jarbas Passarinho
Foi ministro de Estado, governador e senador


O presidente Lula, citando versos do cantor Raul Seixas, disse ser “uma metamorfose ambulante”. Pedro Malan, em artigo em O Estado de S.Paulo, de 8 do corrente, sob o título “Metamorfoses”, começa por salientar que o verso todo é: “Prefiro ser metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Pleno de citações que mostram erudição, o autor começa por lembrar a frase de Keynes: “Quando mudam as circunstâncias de forma significativa, eu mudo de opinião. Você o que faz?”

Os políticos mais lidos, para justificar a mudança de partido ou de convicção de doutrina política, servem-se do grande estadista do Segundo Império, o ilustre mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos, pilastra do Partido Liberal. Aos que o alcunhavam de trânsfuga, porque se passara para o Partido Conservador, defendeu-se: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava na aspiração de todos, mas não nas leis; o poder era tudo. Hoje, é diverso o aspecto da sociedade; os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade que corria pelo poder, corre agora o risco pela desorganização e anarquia e por isso sou regressista. Não sou trânsfuga”.

O sumo de seu argumento é que se antes lutara contra o despotismo, agora passara a ver o perigo da anarquia. Raul Seixas devia ser o patrono dos que desrespeitam a fidelidade partidária e mudam constantemente de partido por não mais quererem “ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Malan adverte que “há riscos em ser a metamorfose excessivamente ambulante”.

O presidente, reiteradamente, disse que não era de esquerda. Decepcionou petistas “históricos”, do sociólogo Francisco de Oliveira à brava senadora Heloísa Helena, passando pelo consultor de empresas José Danon, que usou esta frase, entre ironia e lástima: “Acho que votamos no Lula que não era, aí veio o Lula que era e nos pegou”. A frase engloba os que pensaram que Lula seria o símbolo da virada socialista da América Latina, de par com os burgueses que entendem de socialismo tanto quanto minha velha avó entendia de logaritmo neperiano ou física quântica.

Hábil, fez a primeira de muitas metamorfoses, aderindo aos mandamentos do populismo, tão bem analisados pelo historiador mexicano Enrique Krause, especialmente aquele mandamento que diz: “O populista não só usa da palavra. Ele se apropria dela, veículo específico de seu carisma”. Ele, as pesquisas de opinião consagram. Já a sua aprovação chega a 65%, o que não teria alcançado se os pensadores esquerdistas históricos lhe fizessem prisioneiro das velhas opiniões de Marx e os servos da ética o fizessem Catão, o Antigo, a impedir o assalto aos cofres da viúva chamada República.

Se houvesse pesquisa, não popular, mas entre os parlamentares brasileiros, aposto que mais de 90% não saberiam dizer o que foi — e continua a ser — o Foro de São Paulo, fundado em 1990, espécie de convenção das esquerdas sul-americanas, iniciativa do Partido Comunista de Cuba. A ilustre companhia reunida na capital de São Paulo tinha todas as alternativas revolucionárias da práxis leninista, a partir dos guerrilheiros das Farc, comunistas da Colômbia, que são financiados pelos traficantes de cocaína, fazem milhares de seqüestros para receberem resgates, exceto dos muitos mantidos como moeda de troca pelos 500 guerrilheiros presos, o que não se deu até agora, e há mais de 44 anos não se deixam abater pelos governos democráticos locais.

Comparsas foram também, no Foro de São Paulo, os extremistas comunistas chilenos, que combatem o socialismo democrático, e a caterva dos revolucionários argentinos, venezuelanos e bolivianos que tinham como lema “fazer dar certo o que não deu no Leste Europeu”. Basta isso para definir o Foro no espectro das esquerdas. Dele participou, com destaque, o então líder sindical presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, derrotado candidato à Presidência em 1989. Ele era, por dedução lógica, um homem de esquerda acolitado pelo extremista Marco Aurélio Garcia, hoje seu assessor especial para política externa.

Na comemoração dos 15 anos do Foro, o orador principal foi Lula. Recordou, saudoso e feliz, a criação do Foro e exemplificou as conquistas na Venezuela, Bolívia e Uruguai. Muito aplaudido, exortou os companheiros: “O que nós precisamos é trabalhar para consolidar, para que a gente não permita que haja qualquer retrocesso nessas conquistas”. Recentemente, em Belém do Pará, enlevou-o a reminiscência da fundação e das conquistas do Foro de São Paulo, o que prova que todas as metamorfoses anteriores disfarçaram, camufladas, a verdadeira imagem reiterada no calor do portal da Amazônia, o que por si só desnuda a articulação ideológica com os caribenhos e os andinos, a ocupação militar de nossas refinarias na Bolívia e a leniência com os insultos do caudilho da Venezuela. Tudo subordinadamente aceito, pelo bem da causa do “socialismo do século 21”, a matriz que marca o fim das metamorfoses já desnecessárias.

domingo, dezembro 16, 2007

O dia em que o PSDB foi PT


Lula e o PT foram contra todos os pactos engendrados para o bem do país: eleição de Tancredo, para sair da ditadura; apoio a Sarney, para consolidar a redemocratização; aval à nova Constituição, em 1988; sustentação de Itamar, na transição pós-Collor

BRASÍLIA - Lula e o PT foram contra todos os pactos engendrados para o bem do país: eleição de Tancredo, para sair da ditadura; apoio a Sarney, para consolidar a redemocratização; aval à nova Constituição, em 1988; sustentação de Itamar, na transição pós-Collor; estabilização da economia na era FHC, velho parceiro antiditadura.
Por quê? Porque o objetivo de Lula e do PT era marcar posição e chegar ao poder. Demorou, mas deu certo. Venceram e se reelegeram.
Foi exatamente essa a lógica dos deputados e senadores tucanos ao derrotar a CPMF. Lula está forte. O Congresso, os partidos e a oposição, em particular, estão frágeis. Dar R$ 40 bi para o Planalto, que já conta com ventos internacionais favoráveis, carga tributária escorchante e arrecadação recorde, seria dar a vitória ao adversário em 2008 e fortalecê-lo para 2010. Não era, pois, da lógica de oposição.
Serra e Aécio têm um governo estadual e a perspectiva de subir a rampa. Ambos tinham interesse em negociar com o Planalto e em salvar a parte que lhes cabe e lhes caberia do latifúndio da CPMF. Mas, para poderem usar a CPMF na Presidência, eles precisam, antes, chegar lá. Não é fortalecendo um Lula já forte que vão conseguir.
E o que o PSDB lucraria recuando de última hora para votar com o Planalto? Seria uma desmoralização. Não ganharia um só voto do eleitorado de Lula e irritaria o seu próprio eleitorado, cansado de uma oposição débil e errática.
Foi a maior derrota política do governo Lula em seis anos -e dói no bolso. Contra a parede, o governo dá tratos à bola para anunciar nesta semana um presente de Natal às avessas. Novos impostos e corte de gastos? Porque o fundamental agora, para todos, é recompor os recursos da saúde, literalmente vital. Interessa a governos criar e manter impostos. Cabe à oposição acabar com eles. A quarta-feira, 12/12, foi o dia em que o PSDB foi PT.
Eliane Catanhede

segunda-feira, dezembro 10, 2007

A marcha da insensatez bolivariana!!!

Paulo Guedes - Época

“Não se perde a liberdade de uma só vez”, alerta-nos o filósofo inglês David Hume. Os sintomas da gradual asfixia da democracia venezuelana são claros, e seu diagnóstico é conhecido.

Sintoma número 1
O presidente Hugo Chávez brada diante das câmeras de TV: “Foi uma vitória de m...!”. Referia-se à vitória da oposição no plebiscito que rejeitou sua proposta de reforma constitucional.

Diagnóstico: “Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por imagens vívidas de um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase. Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo ‘sim ou não’” (Robert Paxton, A Anatomia do Fascismo, 2005).

Sintoma número 2
Os chefes das Forças Armadas venezuelanas reafirmam seu apoio a Chávez aos gritos de “Pátria, socialismo ou morte!”.

Diagnóstico: “A conciliação do socialismo com os métodos democráticos pertence ao mundo das utopias. O socialismo não é o caminho para a liberdade, e sim para ditaduras a favor e contra. Um caminho para a guerra civil da mais feroz espécie. A ascensão do nazismo e do fascismo não foi apenas uma reação às tendências socialistas do período precedente, e sim uma conseqüência dessas tendências. A transição do socialismo ao nacional-socialismo ou ao fascismo foi inevitável. Representando pólos aparentemente opostos no espectro político, eram apenas as duas faces das mesmas tendências totalitárias” (Friedrich A. Hayek, O Caminho da Servidão, 1944).

Sintoma número 3
O fechamento da RCTV e a ameaça de abertura de processo contra a rede de TV CNN por “incentivar seu assassinato”.

Diagnóstico: “As palavras de ordem e as manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas, bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos, sempre assegurando a legalidade do sistema” (Louis Dupeux, História Cultural da Alemanha, 1989).

Sintoma número 4
A demonização do capitalismo internacional e particularmente da liderança econômica americana.

Diagnóstico: “Os primeiros movimentos fascistas atacaram o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar terras em favor de camponeses. Atraíram as vítimas da globalização e os perdedores da modernização usando as técnicas de propaganda mais modernas” (Paxton).

Sintoma número 5
Líder, povo, identidade, poder e Constituição “bolivarianos”.

Diagnóstico: “Política de massas, o fascismo tentava apelar sobretudo às emoções pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora consciente de sua identidade e de seu poder” (Paxton).

Sintoma número 6
Militantes chavistas espancando universitários e opositores.

Diagnóstico: “Um artifício usado pelos totalitaristas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalidade e violência arbitrária” (Paxton).

Se “nos tornamos mais sábios quando reconhecemos que muito do que já fizemos foi insensato”, como afirma Hayek, a tentativa de reengenharia de um socialismo “bolivariano” no século XXI revela a completa ausência de sabedoria. Uma insensatez “bolivariana”.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A comédia que virou chanchada

Augusto Nunes

Encenado em 1995 e em 1999, o espetáculo da prorrogação da CPMF nunca chegou a prender a atenção da platéia brasileira. Nas duas apresentações, dirigidas por Fernando Henrique Cardoso, o elenco seguiu burocraticamente o enredo, baseado no combate travado entre o poderoso exército governista, favorável à sobrevida do imposto do cheque, e tropas oposicionistas agarradas ao argumento segundo o qual provisório é provisório. Não é sinônimo de permanente.

Em ambas as temporadas, o que deveria ser um drama acabou virando comédia - e de quinta categoria - minutos depois de descerradas as cortinas. "O Brasil não sobreviverá sem a CPMF", garantia um general governista. A platéia caía na gargalhada: como levar a sério alguém que falava linguagem de vilão com sotaque de mocinho? "O governo que gaste menos", revidava a ordem de um guerreiro oposicionista. A platéia morria de rir: como levar a sério alguém que bancava o herói sem conseguir disfarçar a cara de bandido?

Novamente em cena desde setembro, o drama reduzido a comédia de mau gosto pelo script farsesco, pela escassa imaginação do diretor e pela canastrice do elenco, vai se transformando na mais espantosa chanchada já apresentada no Teatrão do Planalto. Promovido a diretor de elenco em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva promoveu uma radical inversão de papéis: quem era isto agora é aquilo. Os que juravam de morte a CPMF passaram a defendê-la a tiros. Os que lutavam para prolongar-lhe a vida resolveram enterrá-la já. Sem choro nem vela. E em cova rasa.

A confusão decorrente da abrupta reviravolta - não é tão simples decorar falas que não faz muito estavam em outras bocas - foi ampliada consideravelmente quando o diretor resolveu assumir também as funções de roteirista e retocar a história a machadadas. Começou infiltrando cenas em que soldados oposicionistas se viram tentados com mimos e favores a mudar de uniforme.

Não funcionou, e Lula teve outra idéia: abreviar o desfecho com a assinatura de um tratado de paz entre as partes em conflito. Também não funcionou. Louco por um palco, o diretor e roteirista Lula achou que chegara a hora de brilhar como ator. E a coisa desandou de vez. No papel de comandante da turma decidida a explodir a CPMF, não fizera feio nos espetáculos dirigidos por FH. Seria diferente desta vez.

O artista voltou ao palco há uma semana. Não mudaram a voz roufenha, a cara zangada, o olhar feroz e a língua sempre solta. Antes como agora, em cena Lula não fala; vocifera. Mas o avesso do personagem passou a vociferar o contrário do que dizia. Ficou muito estranho. Como um John Wayne no papel de bandidão. Como Jack Palance bancando o mocinho.

"A CPMF é o mais justo dos impostos", grita o ator que, nas versões anteriores, qualificava de "coisa de golpista" a prorrogação do tributo. "Só sonegador é contra esse imposto", acusa a garganta que durante 10 anos até nos ensaios se entusiasmava com textos que comprovavam os estragos impostos à classe média pelo monstrengo inconstitucional. A dedicação do ator só serve para comprovar que, na ficção ou na vida real, Lula não tem compromisso com a coerência.

Nem com a palavra empenhada. Em 1999, fazendo coro com todo o elenco, Lula garantiu que o espetáculo nunca mais seria encenado. Renovou a promessa em 2006. Era mentira.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Democracia

Ali Kamel

A vitória do “não” na Venezuela assanhou os setores antidemocráticos e autoritários aqui do Brasil. Muitos tentaram demonstrar que a derrota de Chávez era a prova de que seus críticos são injustos: a Venezuela seria uma democracia pujante, em que o presidente submete suas idéias ao povo e acata os resultados, tudo muito normal. A vitória do “não” foi sem dúvida uma vitória dos democratas venezuelanos, mas, nem de longe, a evidência de que o regime em vigor naquele país é democrático. O que se evitou ali foi mais um golpe na democracia, o definitivo sem dúvida, mas, para que a liberdade volte a ser uma realidade, o caminho ainda é longo. Já se tornou um chavão, mas é inevitável repetilo: eleições são fundamentais numa democracia, mas, por si só, não atestam que um regime seja democrático.

Depois de eleito em 1998, Chávez, por decreto, decidiu fazer uma consulta popular para que o povo aceitasse ou não a convocação de uma Constituinte, que teria por objetivo implantar a “revolução pacífica bolivariana”. O Congresso, eleito apenas um mês antes (portanto, perfeitamente legítimo), decidiu resistir, alegando que o presidente não tinha o poder de fazer tal consulta. Mas a Suprema Corte do país, para agradar a Chávez, não somente autorizou o plebiscito como deu ao presidente o direito de ditar as regras eleitorais para a eleição dos constituintes. O que fez Chávez? Pra aquela eleição, acabou com o voto proporcional e instituiu o voto majoritário, em que o vencedor de um distrito leva todos os votos. E mais: nas cédulas eleitorais, proibiu a menção a partidos, mas apenas ao nome ou ao número dos candidatos. Assim, os partidários de Chávez tiveram 55% dos votos, mas, dado o sistema majoritário, obtiveram 92% dos assentos na Constituinte. Se o voto proporcional tivesse sido mantido, seus oponentes teriam ficado com 45% das cadeiras e não com apenas 7%.

A Constituinte nasceu com esse vício de origem, o que não a impediu de promover uma escalada autoritária: decretou a extinção do Congresso e procedeu a um expurgo no Judiciário, com mais de um terço dos juízes sendo demitidos sumariamente, sem direito a defesa. O atual Congresso, unicameral, tem 100% de partidários de Chávez, já que a oposição, em protesto contra leis eleitorais que a prejudicavam, boicotou as eleições.

Não é à toa que, em janeiro deste ano, os deputados foram unânimes ao aprovar uma excrescência: deram a Chávez, pela segunda vez desde 1998, o poder de governar por decretos por um ano e meio, a contar de fevereiro.

O Judiciário é outra calamidade. Logo depois da Constituinte, 20 juízes foram indicados para a Suprema Corte, todos, de início, simpáticos ao presidente. Com o tempo, a corte se dividiu, o que levou Chávez a aprovar uma nova lei para o Judiciário, aumentando para 32 o número de juízes, eleitos, por maioria simples, para um mandato de 12 anos. Ou seja, de uma só vez, Chávez poderia indicar juízes em número suficiente para voltar a ter uma maioria folgada. Mas não foi só: a nova lei dava ao Congresso a possibilidade de afastar qualquer juiz que cuja conduta fira a majestade do cargo ou solape o bom funcionamento da Justiça, seja lá o que essas duas coisas venham a significar. Com essa espada sobre suas cabeças, como falar em independência dos juízes? Num ambiente como este, a Venezuela precisará ainda de muitas vitórias dos democratas para que possamos considerar o país uma democracia.

Situação muito diversa da nossa, ainda bem. Aqui, Executivo, Legislativo e Judiciário são realmente autônomos, independentes e se contrabalançam. As provas disto têm sido oferecidas de modo contínuo pelos três poderes. E pelo nosso povo também. Mais e mais fica claro que a democracia é um valor de que não se quer, em nenhuma hipótese, abrir mão. A última pesquisa Datafolha é um belo exemplo de como estamos maduros: o apoio ao presidente Lula continua na estratosfera, mas a possibilidade de um terceiro mandato foi plenamente rejeitada em todas as regiões e em todas as faixas de renda e de escolaridade (uma maioria nunca menor do que 58%). O resultado dessa pesquisa talvez seja suficiente para que o PT siga de fato a palavra do presidente e pare de namorar essa idéia. Somos de fato e de direito uma democracia, e isso é reconfortante. O que não impede de ainda vivermos, aqui e ali, episódios que, apesar de menores, devem merecer o repúdio de todos nós. Por exemplo, a censura à propaganda do livro “Lula é minha anta”, de Diogo Mainardi, um jornalista competente, cuja importância pode ser medida pelos ataques que recebe. A propaganda foi banida das telas que exibem vídeos e informações em nossos aeroportos. A empresa responsável pelo serviço alegou que a Infraero proíbe a veiculação de propaganda política, o que é ofensivo, porque o livro não é propaganda partidária, mas simplesmente jornalismo de opinião, em que, ao lado da revelação de fatos, o autor emite juízos sobre eles, o que é absolutamente legítimo, porque feito com transparência. No livro, Mainardi faz a crônica do escândalo do mensalão, reunindo num volume os artigos que publicou com grande repercussão na revista “Veja”. Pode-se gostar ou não dele, mas jamais censurá-lo.

Como o próprio Mainardi disse, a decisão pode ter sido excesso de zelo de algum funcionário de quinto escalão.

Mas que episódios assim ainda se repitam é sinal de que temos de estar sempre vigilantes.

Não ao continuísmo

Merval Pereira

A frase mais emblemática da atual situação da Venezuela, depois que a derrota do governo foi oficializada, é a que Hugo Chávez proferiu ao admitir que fora derrotado nas urnas: “Com o coração lhes digo, passei várias horas me debatendo em um dilema. E saí do dilema, estou tranqüilo, espero que os venezuelanos também”. Ora, qual poderia ser o dilema de Chávez, a não ser o de acatar ou não o resultado do referendo? Essa dedução confirma-se por outras declarações, quando ele diz que “por enquanto, não podemos” aprovar as reformas, mas, no entanto, ressalva que elas continuam “vivas e não morreram”. Mais tarde, Chávez anunciou que pretende fazer as reformas “através de outros mecanismos”, o que deixa em suspenso a definição sobre o que fará.

Tudo indica que, depois de muito tempo, Hugo Chávez sentiu que a sociedade civil que começa a se organizar, especialmente devido aos movimentos estudantis, lhe impôs um limite, derrotando, além da possibilidade de reeleição permanente, a pretensão de poder decretar estado de emergência e retirar os direitos dos cidadãos a seu próprio critério. A abstenção de mais de 40% dos eleitores marca uma rejeição às propostas de Chávez, mesmo que não signifique uma oposição total ao governo.

Embora a reforma chavista contenha vários pontos polêmicos que reforçariam ainda mais o poder do Executivo, a possibilidade de reeleição indefinida parece ser o cerne da questão democrática.

Quando comparou sua pretensão ao sistema que vigora na França, no que foi apoiado pelo presidente Lula, Chávez estava apenas misturando alhos com bugalhos, por ignorância ou má-fé.

De fato, não há limites para a reeleição do presidente francês, o que foi conseguido através de um plebiscito por Charles de Gaulle em 1958.

Em 24 de setembro de 2000, o então presidente Jacques Chirac submeteu a referendo uma nova proposta, que está em vigor: o mandato foi reduzido de sete para cinco anos, mas com a manutenção do direito de reeleição sem limites.

A questão, no entanto, é que o presidente francês não acumula as funções de chefe de Estado e chefe de Governo, como nos sistemas presidencialistas da América Latina.

No sistema parlamentarista da França, a função de chefe de Governo é exercida pelo primeiro-ministro, e esta é uma distinção fundamental.

O cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas do Rio, considera que limitar a reeleição, ou até mesmo a proibição de reeleição, é “uma característica” num continente que já foi marcado pelo continuísmo e pela falta de alternância no poder.

Essa marca é tão forte que ele lembra que o PRI mexicano, embora tenha dominado a política do país durante tanto tempo, não permitia a reeleição, e, mesmo na ditadura brasileira, havia o rodízio de generais no poder.

Amorim Neto acha também que Chávez já temia ser derrotado quando se confrontou com o governo espanhol recentemente na Cúpula Latino-americana do Chile, quando o Rei Juan Carlos pronunciou a já famosa frase: “Por que não se cala?”: “Ele deve estar sentindo que a clivagem antiimperialista já está se esgotando e agora está explorando a clivagem étnica”, analisa o cientista político, lembrando a frase de Chávez: “Se eu fosse um indígena, lançaria uma flecha contra o Rei”. A clivagem étnica, no entanto, não é tão forte na Venezuela quanto é na Bolívia e no Equador, ressalta Octavio Amorim Neto.

É um exagero oposicionista comparar a derrota de Chávez no referendo ao resultado da pesquisa de opinião divulgada no domingo pelo Datafolha, que mostrou que mais de 60% do eleitorado contrário à possibilidade de o presidente Lula vir a disputar um terceiro mandato presidencial. A comparação é indevida até porque o próprio presidente Lula, sempre que se pronunciou a respeito, foi para se colocar contrário à idéia.

Mesmo que se considere a possibilidade de Lula estar encenando, enquanto incentiva seus correligionários a trabalharem o projeto, não é possível compararse essa manobra política no estágio em que se encontra com a proposta concreta dos governos de Chávez ou de Morales.

Mas a rejeição venezuelana já está produzindo seus efeitos também na Bolívia, cujo governo acena com a possibilidade de retirar da reforma constitucional a proposta de reeleição indefinida, para discuti-la em outra ocasião.

Nem Chávez nem Morales desistiram da idéia, mas fazem, cada qual dentro de suas circunstâncias políticas, manobras táticas de recuo para reagrupar suas forças. No caso dos petistas, que volta e meia tratam da idéia do terceiro mandato, a pesquisa de opinião do Datafolha foi uma ducha de água fria que provavelmente vai enterrar de vez a tentativa.

Embora o deputado Devanir Ribeiro, compadre de Lula que começou o movimento pelo terceiro mandato, tenha tido uma leitura “otimista”: ele acha “promissor” o fato de cerca de 30% estarem a favor do terceiro mandato, pois “ainda nem fizemos campanha”.

O que é comparável nos três casos é o sentimento generalizado no continente de rejeição à eternização de líderes no poder. Num continente de tradição autoritária, de abuso da máquina pública para permanecer no poder, dar limites à reeleição deve ser uma regra sagrada da democracia.

domingo, dezembro 02, 2007

Chávez? Nada disso. É tosco demais.

Segundo pesquisa do Datafolha, 65% dos brasileiros são contra o terceiro mandato para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pressupõe-se por lógica: eles são contra a extensão para qualquer outro presidente no futuro. Notícia, aparentemente, alvissareira se não for levado em conta outros 31% dos entrevistados. Eles ainda não estão convencidos de uma evidência brutal. O prolongamento excessivo do mandato presidencial, a perenidade do governante no poder é prejudicial. Há certa implicância quando se evoca o exemplo de Hugo Chávez para demonstrar o prejuízo causado pelo despautério. Quem aponta para Venezuela tenta facilitar a compreensão. Embora com sociedade estruturalmente diferente, o país está ali, fronteiriço com o Brasil. Mas o outro lado crê tratar-se de divergência ideológica da... qual é nome do bicho papão? Ah, a nova direita. Está bem. Admitamos uma inverdade: Chávez é um democrata conduzindo seu país para o melhor dos mundos. No embalo, vamos esquecer o referendo da Venezuela, apostar na existência da nova direita que é... qual é o adjetivo? Golpista? O problema da retórica é a impossibilidade de transpor outras referências mundo afora. A mais poderosa delas encontra o presidente russo Vladimir Vladimirovitch Putin, 54 anos.

Reparem. A nova direita está no poder na Rússia. Sai das eleições legislativas russas, um parlamento (Duma) amplamente favorável a Putin. Haverá pequena representatividade do Partido Comunista. Ora, a Rússia nunca esteve tão próxima do modelo sonhado para o Brasil por alguns áulicos do presidente Lula. Dito de outro modo: o DEM, PSDB, PMDB apóiam incondicionalmente Lula. Uma minoria, o PT e partidos de esquerda radicais ficam ali para não deixar o presidente sair do rumo. Um país com uma oposição aparente não seria uma beleza? Esqueçam o Chávez. Os meios do coronel venezuelano são toscos. A figura do caudilho sul-americano está rançosa, provoca repelência em corações e mentes. Algo semelhante à astúcia do futuro czar Putin é o caminho mais sutil para o terceiro mandado de Lula. Putin recusou reforma constitucional que lhe permitia disputar um terceiro mandado presidencial em março de 2008. Em contrapartida, candidatou-se a deputado por um partido cuja pesquisas revelam eleição fácil. No regime parlamentarista russo, significa que Putin, eleito deputado, pode se tornar primeiro-ministro. A partir daí, governa pela Duma concentrando poder com um presidente fraco. O que diz o Lula? O presidente brasileiro afirma e reafirma: “Quem me conhece sabe que eu não brinco com a democracia.” Quem se lembra do “Fora FHC” sabe. Lula brinca sim, senhor. Mas há uma acepção muito conveniente, internacional e nacional, Lula não é Chávez. São recorrentes as confusões que Lula semeia entre o regime presidencialista e parlamentar para falar da longevidade no poder.

Faz-se aqui uma aposta. A tentativa do terceiro mandado de Lula não passará pelo exemplo arcaico, desgastado de Hugo Chávez. A sociedade brasileira amadureceu politicamente. Tentar forçá-la a aceitar, engolir a força algo que rejeita é contraproducente. Lula sabe. No entanto, ele deseja sim, permanecer onde está por mais tempo possível. A questão agora é escolher qual o meio mais palatável.

Antonio Ribeiro, de Paris
E-mail: aribeiro.deparis@gmail.com

sexta-feira, novembro 30, 2007

A verdade de L.

Miriam Leitão

L. não sabe, mas é um teste para o Brasil. L. é uma espécie de soro da verdade. Cada vez que uma autoridade abre a boca para falar dela, diz alguma insensatez que vai revelando com que calma se aceita o inaceitável no Pará. Nestes breves dias de sua notoriedade, com seu cabelo cortado a faca, seu andar desengonçado e sua inequívoca menoridade, L. dói como um nervo exposto.

Um a um foram caindo pela boca os envolvidos com seu sofrimento. É chegar perto de L., e a autoridade em questão começa a dizer sandices. Ela tem o efeito de produzir atos falhos em série. Às vezes, a autoridade diz mentira tão descarnada de qualquer sentido que acaba revelando a verdade, pelo avesso. Às vezes, deixa escapar a verdade do preconceito contra pobres e convicções de arrepiar. A delegada Flávia Verônica Monteiro, que a prendeu, disse que “a lei não me dava o direito de fazer outra coisa”.

Por essa estranha interpretação da delegada, a lei a manda prender uma menor de idade e, pior, numa cela com vários homens. A delegada disse que “nunca ouviu falar” dos abusos contra ela na cela. Quase celestial essa delegada! Nunca imaginou o que poderia estar acontecendo atrás das grades instaladas na cara da rua de Abaetetuba.

A corregedora Elcione dos Santos Moura disse que ainda não sabia o nome dos policiais que ameaçaram L. após o ocorrido. A delegada corrigiu a corregedora: são os inspetores Pires e Roosevelt.

Eles a ameaçaram para que ela nada revelasse.

L. tudo revelou.

O delegado-geral do Pará, Raimundo Benassuly, também foi tocado pelo soro de L.: “Ela tem alguma debilidade mental”, disse, em pleno Senado. Na sua estranha forma de pensar, a culpa é da “débil mental” que não revelou ser menor de idade.

Antes disso, o soro da verdade havia surtido efeito em outros personagens da tragédia. O superintendente da Polícia Civil Fernando Cunha foi o primeiro a dizer a frase: “Se ela dissesse que era menor, seria dado um outro procedimento.” A frase foi repetida, com algumas alterações, por várias outras autoridades. A repetição revela que a convicção na polícia do Pará é de que, após a maioridade, a mulher pode ser posta prisioneira para ser estuprada ao bel prazer dos colegas de cela. Os casos continuam vindo à tona. A perversidade era rotina. Mais uma verdade revelada por L.

Atingida também pelo soro que faz todos revelarem as sandices que pensam, a governadora Ana Júlia desafinou.

Admitiu que era comum a prática no estado que governa há um ano. Depois, disse que a sociedade deveria se mobilizar para que esse tipo de prática seja abolido.

Ora, senhora governadora! Passou o tempo da passeata; a senhora é o poder no estado. Uma manifestação contra esse crime terá que bater à sua porta.

A deputada Maria do Rosário, que relatou com tanto brilho a CPI contra a exploração sexual infantil, foi ao Pará para defender a governadora.

Ela disse que Ana Júlia não pode ser responsabilizada, já que está há pouco tempo no cargo.

Seria fundamental a deputada ver que L. é a encarnação extremada do objeto do seu trabalho na CPI: uma menina abusada sexualmente nas dependências, e sob as ordens, do Estado brasileiro! Ela não deveria ser parte de uma disputa política entre PT e PSDB.

O soro da verdade de L. faz efeito até em quem fica em silêncio. O silêncio da ministra Nilcéa Freire, que hesitou tanto nos primeiros dias em se pronunciar. O que faltou à ministra da Mulher entender é que esse caso é um sinistro de grandes proporções.

Equivale para a Secretaria Especial da Mulher o que um grande desastre significaria para a Defesa Civil. A ministra deveria ter ido para o local do sinistro no primeiro instante e lá ficado vigilante até saber a imensidão do suplício que atinge as mulheres infratoras do Pará para exigir nada menos que todos sejam punidos. Todos os criminosos que — em nome do Estado e financiados pelos nossos impostos — expõem mulheres prisioneiras ao sofrimento do estupro serial.

L. revela até a relatividade de certo rufar de tambores.

O Brasil bate o recorde de entrada de capital estrangeiro, vira país de Alto Desenvolvimento Humano no ranking da ONU, espera o grau de investimento e vai formar um fundo soberano.

Mas parece pré-sal.

Parece estar num estágio anterior à civilização.

Todos esses avanços merecem ser comemorados, todos são verdadeiros; só que o caso de L. mostra que o Brasil está numa encruzilhada.

Se aceita esse padrão de tratamento aos desamparados, nunca será, de fato, desenvolvido.

Será o que sempre foi: uma sociedade partida, onde a proteção da lei é para alguns poucos.

L.éo fio do novelo. Puxando pelo fio, o país foi conhecendo as outras histórias, todas inconcebíveis, inaceitáveis, independentemente da idade que tenha a vítima. L. revela os retratos do pior lado do Brasil. Mas uma informação está ainda faltando. A juíza que a condenou sem culpa formada, os promotores que nada fizeram em sua defesa, a delegada que a enjaulou, a corregedora, os secretários que falaram sobre o caso ainda não explicaram o que de tão valioso L. roubou para ser condenada desta forma sumária e cruel. Parece que, para todos eles, o que L. roubou não é importante, o fundamental é que ela fosse punida.

Caras emoções baratas

Nelson Motta

RIO DE JANEIRO - Por onde andam Darci Vedoin e seus amigos das ambulâncias? E Zuleido Veras, sumiu com seu iate na baía de Todos os Santos? E o pobre Freud Godói, que, mesmo inocente, teve que pedir para sair? E Waldomiro Diniz, réu confesso e ícone histórico do clePTopetismo? Onde andará churrascando Lorenzetti? Eles não telefonam, não escrevem, não dão notícias, já estamos todos com saudades de suas peraltices.
Este é o pior efeito colateral do épico pornopolítico de Renan Calheiros, que, durante meses, sugou todas as atenções para si, deixando na sombra e no esquecimento os escândalos anteriores. Agora que a novela está próxima do desfecho e, como vem acontecendo ultimamente, o vilão será perdoado, o público aguarda ansioso pelo novo escândalo. Já não conseguimos viver sem eles, estamos dependentes dessas emoções baratas, inebriados pelas ilusões de que os crimes estão sendo descobertos e está sendo feita justiça, acreditando nos paraísos artificiais em que os criminosos, especialmente os políticos, são presos e o dinheiro é devolvido.
Os militantes profissionais salivam na internet na expectativa de revelações, ou mesmo de mentiras, que levem os adversários ao pelourinho; a mídia corre atrás de carne fresca para o público ávido de sangue e de vingança; os políticos atingidos multiplicam os seus dossiês contra adversários, e até contra correligionários, para desviar o foco, em busca do esquecimento e da impunidade.
A guerra de lama está virando esporte nacional em nossos dias. Emporcalhados, chafurdando no lodaçal da ideologia, os combatentes só conseguem dizer: "foi ele que começou" ou "ele roubou e mentiu mais do que eu". Mas, no final, como sempre na história deste país, uma mão suja a outra, e salvam-se todos.

"Chique"

Eliane Cantanhêde

BRASÍLIA - Segundo Lula, o Brasil agora é "chique", porque é do Brics, com Rússia, Índia e China, e além disso integra o grupo dos países de alto desenvolvimento humano. Ele, porém, esqueceu de alguns "detalhes" e manteve aquela postura curiosa: vitórias são sempre dele; derrotas, dos outros.
A curva do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil mostra claramente que os avanços do país são parte de um longo processo: 0,723 em 1990, 0,753 em 1995, 0,789 em 2000 e, enfim, 0,800 em 2005. Ou seja, o menor avanço em 15 anos foi justamente de 2000 para 2005.
É como Lula capitalizar a auto-suficiência do petróleo e a descoberta de um possível megacampo da Petrobras como mágicas dele. Ou, ainda, como Lula comemorar a marca de um milhão de carros da Ford na Bahia. O PT gaúcho expulsou a fábrica, e o PFL baiano pegou. A festa é do PFL (ou DEM) baiano.
E não custa lembrar que o Brasil entrou no grupo de alto desenvolvimento humano como lanterninha, o último entre os 70, o que não tem nada de chique, especialmente quando comparado ao desenvolvimento econômico, também resultado de um longo processo.
No confronto com dados da realidade, a coisa fica ainda pior. Na mesma semana em que Lula estala a língua de alegria com o IDH, o país e o mundo se chocam com a história de L., a menina franzina e violentada pela vida, entregue pelas "autoridades" às feras no Pará.
Essa menina não é um caso isolado. Ao contrário, sua dor chama a atenção para a situação de sabe-se lá quantas mulheres no Pará e sabe-se lá quantas mulheres e homens jogados como bichos em cadeias pelo país afora. Muitos, aliás, inocentes e sem defesa.
Números são números. Siglas são siglas. A realidade, senhor presidente, é que o Brasil vem evoluindo, sim, mas está longe, muito longe de ser "chique". Pergunte a L.

Fora da agenda

Dora Kramer

O Palácio do Planalto vem se especializando na prática de deixar o dito pelo não dito sem se sentir na obrigação de oferecer ao público uma explicação convincente sobre seus atos.

Na quinta-feira o ministro da Defesa, Nelson Jobim, apresentou-se na hora e dia marcados para mostrar ao presidente Lula o plano para evitar atrasos nos vôos e caos nos aeroportos no fim de ano.

Depois de um chá de cadeira de uma hora, o encontro foi cancelado porque o presidente precisava receber o grão-duque Henri de Luxemburgo e a agenda não lhe permitiria, ao longo do dia, dedicar mais que meia hora ao ministro da Defesa e seu plano de ação.

A agenda do presidente na quinta-feira estava assim organizada: 9h, despacho interno; meia hora depois, reunião com o general Jorge Félix, chefe do gabinete de segurança institucional, a quem dedicaria 15 minutos para então receber o advogado-geral da União, José Toffoli, por 45 minutos.

Às 10h30 seria a vez de Jobim. Ao meio-dia, o grão-duque e, na volta do almoço no Itamaraty, às 15h, reunião com Stephen Green, presidente mundial do grupo HSBC.

Às 16h30, despacho interno. Quatro horas e meia depois, entrevistas para televisão no Palácio da Alvorada e nada mais. Como se vê, o dia não estava exatamente feérico em termos de agenda.

O adiamento das medidas está mal explicado. Se o plano estava pronto e tempo havia quando se marcou a apresentação, fica a impressão de que para o presidente da República a crise no setor aéreo, a agressão ao cidadão solapado em seu direito de consumidor continua sendo assunto menor, relevante e urgente apenas quando ocorrem tragédias que lhe possam render prejuízos à imagem.

Ou, então, esse plano anunciado por Jobim não traz novidade alguma, não resolve nada, não passa de simulação de providências e, portanto, não faz diferença que seja anunciado agora ou daqui a 20 dias conforme ficou combinado.

Enquanto isso, as companhias fazem o que bem entendem com os passageiros. Foram autorizadas a para estender de 15 para 60 minutos o tempo considerado como atraso na alteração do horário de pousos ou decolagens.

No geral, entretanto, ocorre o seguinte: o horário previsto no quadro de avisos, que antes era o da decolagem, agora é o da chamada para o embarque. Uma hora, portanto, são, na verdade, duas. Isso quando não há espera dentro do avião ou troca de aeronave.

Nesses casos, a tripulação se desculpa “pelo transtorno”, diz que o passageiro tem toda razão de não gostar e fica assim tudo por isso mesmo.

Já a cobrança de taxas por causa de cancelamentos e alterações de viagens por parte do passageiro obedece rigidamente ao regulamento.

É uma relação desigual em que empresas quebram sistematicamente seus contratos com o cliente, não são obrigadas a cumprir nenhuma contrapartida - pois não há previsão nem fiscalização a respeito - e ao comprador resta o consolo de saber que o ocupante da poltrona ao lado tem sempre uma experiência pior para contar.

O usuário de avião hoje é feito de bobo, mas o governo, a quem caberia organizar o funcionamento do sistema e zelar pela preservação de normas contratuais, não perde tempo com isso, ocupado que está em desperdiçá-lo fazendo marola.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Três retratos 3x4 da geléia tropical

Augusto Nunes

Foi uma delegada quem ordenou que a menina de 15 anos fosse enjaulada em companhia de mais de 30 machos. A sherloque de Abaetetuba está subordinada à Secretaria de Segurança Pública, chefiada por uma mulher. Por ordem da petista Ana Júlia Carepa, primeira mulher a comandar o governo estadual, a delegada foi "afastada das funções que exerce". Tradução: por algum tempo, vai receber sem trabalhar. A secretária de Segurança Pública continuará no cargo.

A perturbadora corrente feminina invadiu os domínios do Poder Judiciário. Foi uma juíza quem, depois de examinar o relatório remetido pela delegacia, ratificou a condenação ao inferno. A mulher que preside o Tribunal de Justiça do Estado ainda não revelou o que acha da performance da doutora. É improvável que lhe prejudique a carreira por tão pouco.

Os companheiros paraenses vivem celebrando a feminilidade de Ana Júlia. Faz sentido. Ao assumir o governo, ela tentou transformar em "assessoras especiais" a manicure e a cabeleireira. Também esbanja jogo de cintura quando dança o carimbó. Mas anda absorvida por um assunto geralmente associado a homens: futebol. Para incluir Belém na rota da Copa do Mundo de 2014, Ana Júlia conseguiu até ser escalada no time de governadores que jogou recentemente na Suíça.

De olho no voto masculino, acabou ganhando, por vias transversas, ao menos 30 eleitores cativos em Abaetetuba. Presenteada com uma adolescente, a turma da cadeia acha que Ana Júlia é a melhor governadora da história do Pará

Continente em transe

Merval Pereira

O Brasil está prestes a ser chamado para mediar mais uma crise política desencadeada pela tentativa do protoditador venezuelano Hugo Chávez de predominar nas relações regionais. Ao “congelar” as relações diplomáticas com a Colômbia, depois que o presidente Álvaro Uribe retirou-lhe a autorização para negociar um pacto humanitário de troca de prisioneiros com as Farcs por ter excedido os limites de sua missão, Chávez chamou o colega de “mentiroso” e colocou o continente em alerta. A tese do Itamaraty de que a integração regional na América Latina tem que ser buscada a todo custo para dar, como disse o presidente Lula na entrevista ao GLOBO de domingo, “tranqüilidade ao continente”, faz sentido, mas tem sido freqüentemente alvejada pelos fatos, que nos últimos dias desmentem a fama de pacífica da região.

Aos conflitos históricos somamse novos, como a reclamação da Argentina contra uma fábrica poluente do Uruguai, o que levou ao fechamento da fronteira entre os dois países; na Bolívia, a ameaça do separatismo se confirma como possibilidade forte devido à tentativa de aprovar uma nova Constituição que dá poderes excessivos ao Executivo, assim como uma nova Constituição na própria Venezuela encontra resistência na sociedade; a Bolívia não cumpre os acordos de fornecimento de gás para a Argentina e o Brasil; e a aliada de Chávez quando ele ainda tinha autorização de negociar a libertação dos reféns das Farcs, a senadora colombiana Piedad Córdoba, que foi ameaçada de morte, recebeu solidariedade do presidente da França, Nicolas Sarkozy, que lhe ofereceu asilo político.

No meio desse ambiente de hostilidades crescentes, a política de armamento da Venezuela acende a luz de alerta em setores militares brasileiros, e a questão do reequipamento das nossas Forças Armadas, que andava preterida por outras prioridades, entra na ordem do dia. Também a entrada da Venezuela no Mercosul fica congelada pela Câmara, para uma decisão definitiva no próximo ano, quando o quadro político estiver mais definido.

Antigas pendências territoriais adormecidas voltam a ser lembradas nesse ambiente convulsionado com a chegada ao poder de dirigentes como Chávez e Morales, como a disputa pela Guiana, que a Venezuela considera sua até o Rio Essequibo, território que até hoje classifica de zona de disputa internacional.

Embora não se encontre qualquer texto escrito a propósito, diplomatas brasileiros lembram que os venezuelanos sempre procuraram cooptar o Brasil nessa disputa, sugerindo que nos restituiriam o que perdemos para a Inglaterra na questão defendida por Joaquim Nabuco, quando o rei da Itália entregou aos ingleses mais do que eles desejavam do Brasil, em troca de concessões britânicas no Mediterrâneo.

Para defender a ex-Guiana Inglesa contra os impulsos expansionistas bolivarianos, os americanos negociam, agora, instalar uma base no Suriname, como já estão na Colômbia e no Paraguai, o que, na análise de experientes e desconfiados diplomatas brasileiros, constituiria também uma forma de cercar o Brasil.

A saída para o mar que a Bolívia negocia com o Chile, e que é a responsável pela política de armamento chilena, pode pedir negociações diplomáticas também mediadas pelo Brasil, sem que, no entanto, aceitemos o desconhecimento de tratados territoriais firmados, pois todas as nossas fronteiras dependem disso: a Bolívia não esquece o Acre, nem a França, o Amapá, que eles consideravam parte da Guiana Francesa.

Sem contar com a Argentina, que ainda considera seu o território de Palmas, na região das Missões. Há mesmo quem garanta que um antigo plano da Argentina seria ocupar Uruguaiana e depois trocar a desocupação pela renegociação do território das Missões. A derrota contra a Inglaterra na disputa das Ilhas Malvinas enterrou esse projeto mirabolante.

Expedito Carlos Stephani Bastos, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora, acha que ainda não existe uma corrida armamentista, efetivamente, na região, “mas o que estamos vendo ao nosso entorno caminha para isto”. Segundo ele, há uma tentativa por parte da Venezuela de Chávez de se tornar a peça central no continente, e esses interesses podem entrar em choque com o de outras nações.

Se referindo indiretamente aos acordos da Venezuela com o Irã e a Rússia, Expedito diz que “estão sendo feitas alianças, inclusive militares, que envolvem itens estratégicos, principalmente na área de energia, que podem ser um grande complicador nos próximos anos”.

O que mais o preocupa não são os aviões e meios navais modernos comprados pela Venezuela, “mas sim a capacidade de fabricação de armas leves, como os fuzis AK-47, em larga escala, que podem amanhã cair em mãos de movimentos sociais, narcotraficantes, crime organizado, garimpeiros, populações indígenas etc, e que ameacem a nossa ordem interna já repleta de problemas, principalmente em nossas grandes cidades”.

Já o professor Domício Proença Júnior, do Grupo de Estudos Estratégicos da Coppe/ UFRJ, acha que, com a experiência do século XX, “é quase reflexo que se tome qualquer adensamento de compras de defesa como sendo corrida armamentista.

No caso da América do Sul isso é apenas recurso retórico, de impacto”. Ele lembra que uma corrida tem que ter mais que um envolvido, e faz a ressalva: “Se as iniciativas venezuelanas produzirem uma escalada de compras na região — uma escalada, e não apenas atos que busquem atualizar um equilíbrio — então em algum momento se poderá estar falando de corrida armamentista.

Mas não é o caso agora”.

Mas Domício Proença Júnior lembra que “as capacidades de todos os demais países, inclusive a Venezuela, são insumos importantes para o processo de definição de prioridades”.

Como se vê, o continente pacífico pode ser palco de conflitos sérios, o que reforça o papel de líder regional do Brasil, desde que exercido com firmeza.

Debilidade funcional

Dora Kramer

O delegado-geral do Pará, Raimundo Benassuly, levantou suspeita sobre a saúde mental da menina que ficou 24 dias à mercê de 30 homens numa cadeia no interior do Estado, sob a tutela do poder público e ao alcance de quem quisesse ouvir seus pedidos de socorro na cidade de Abaetetuba onde, segundo relato de moradores, era de conhecimento geral a presença na delegacia de uma mulher servindo ao festim de bárbaros, em regime de conivência com a polícia, a Justiça, a sociedade local.

Ele não disse nada que o caso em si não tivesse dito a respeito das autoridades paraenses.

A garota certamente não é dona de seu juízo, de seu corpo, de sua saúde física nem mental. É uma morta em vida. Um ser sem chance na vida.

Já o delegado é um débil emocional, funcional e social por opção e convicção. Sua declaração chocou, incomodou a governadora Ana Júlia Carepa, porque foi feita em Brasília, nas dependências do Senado da República.

Mas não destoou do cenário de indiferença, brutalidade espiritual e insensibilidade social que marcaram algumas reações ao episódio desde a sua descoberta para o País e o mundo.

Segundo o delegado, a garota “tem algum problema” porque “em nenhum momento declarou sua menoridade penal”. Seguiu na toada da discussão sobre a prisão “da menor”, da agressão ao Estatuto da Infância e da Adolescência, do absurdo de a delegada que prendeu e a juíza que autorizou serem mulheres.

Fossem homens o absurdo seria menor, poder-se-ia “explicar” a atrocidade atribuindo-a à solidariedade masculina, ao machismo? Fosse uma mulher de 30, 40, 50 anos seria menos chocante?

Tivesse a menina declarado sua menoridade penal, delegada, juíza, carcereiros, policiais, prefeitura, conselho tutelar, secretário de Segurança Pública, governadora teriam ouvido e se preocupado com o destino da infeliz?

Nem por um instante. Como de resto não há a menor preocupação com as “regras da cadeia” em nenhum ponto do País, onde os abusos sexuais fazem vítimas garotas e garotos, menores e maiores, sob o beneplácito de toda a sociedade à qual pouco se lhe dá o que se passa dentro das prisões, a não ser quando das masmorras emerge algum caso que ameace a vida aqui fora ou que sacuda, pela exorbitância, os espíritos anestesiados.

E quando o barbarizado é um rapaz, um homem que seja, por que ninguém se incomoda de fato?

Justamente porque ninguém se espanta com nada nem reage a coisa alguma é que se chega a esse ponto de degradação. Humana e social. Basta ver como houve uma acomodação de sentimentos em relação às selvagerias de rua, desde o espanto da queima do índio Galdino em Brasília anos atrás.

Não passa muito tempo sem que se tenha notícia de um mendigo brutalizado nas ruas das grandes capitais, prática já incorporada à rotina de horror.

Neste exato momento em que o Brasil é elevado à condição de país de alto desenvolvimento humano pela ONU, casos semelhantes acontecem País afora. Às autoridades não interessa mexer no assunto porque preso não dá voto e pobre só importa quando pode ser incluído na rubrica “classe D e E” das estatísticas eleitorais.

Mas um episódio assim fala mais de subdesenvolvimento e desumanidade que qualquer estatística.

O Pará não é o único Estado a abrigar tais atrocidades, mas, como é o que está em evidência, serve de exemplo. A governadora Ana Júlia Carepa, à falta de possibilidade de negar a evidência, admitiu a ocorrência de monstruosidades como a de Abaetetuba há muito tempo e em toda parte. Atribuiu a situação a governos anteriores, mas nada fez quando o eleitor paraense lhe deu a oportunidade de ser governo e tomar uma providência.

Não tomou porque não encontraria no gesto nenhuma recompensa político-eleitoral. Agiu com presteza, porém, na liberação de funcionários públicos do serviço às sextas-feiras durante as férias do mês de julho, para “normatizar práticas comuns nos anos anteriores”.

De onde se observa que havia preocupação da governadora com situações herdadas de seus antecessores. Seletiva, entretanto. Abundante para consolidar o ponto facultativo de parte substancial de seu eleitorado, mas escassa para dedicar alguns momentos de sua atenção às orgias macabras nas cadeias do Estado.

Quando elas se tornaram uma ameaça política, aí sim a governadora correu (em velocidade reduzida, diga-se) para manifestar sua indignação e pedir verbas em Brasília.

Na capital federal a falta de interesse não foi menor e, se compararmos duas tragédias, a da menina e a da morte de sete pessoas no desabamento do estádio de futebol na Bahia, teremos a comprovação da diferença de pesos e medidas aplicada à conveniência do poder público.

O desastre no estádio mereceu presença imediata do ministro dos Esportes e manifestação do presidente da República, como, de resto, deveria mesmo ocorrer.

Mas o drama da garota não recebeu palavra nem presença. No máximo, uma tardia nota oficial e a certeza do ministro da Justiça de que os abusos “vão continuar”

quarta-feira, novembro 21, 2007

O espetáculo da ignorância

Augusto Nunes

Ainda inconformado com a abstinência imposta pela reportagem do jornalista americano Larry Rother, o presidente Lula fica muito mais interessante quando desanda a falar depois de almoços em homenagem a forasteiros ilustres, sempre regados a vinho. Autorizado pelo cerimonial, o anfitrião ergue um brinde ao visitante e, até a hora da sobremesa, molha a garganta com três ou quatro taças. É a dose certa para lubrificar a garganta e destravar a língua de Lula.

Foi assim na quarta-feira passada, ao fim do almoço no Itamaraty em louvor do presidente da Guiné-Bissau. Alguns jornalistas estavam lá para saber o que Lula achara do incidente entre o rei Juan Carlos e o presidente Hugo Chávez. Como já deixara Santiago, o comandante do Aerolula não testemunhara o cala-boca. Mas um falante compulsivo não nega fogo.

Agarrado a generalizações e irrelevâncias, caminhou por alguns metros sobre o muro da neutralidade. De repente, sem que alguma pergunta inconveniente tivesse atrapalhado a travessia, o malabarista resolveu alterar a rota. Perdeu o equilíbrio e perdeu o rumo. "Podem criticar o Chávez por qualquer coisa, mas não por falta de democracia na Venezuela", esbravejou Lula, pronto para brigar com repórteres que, até então, não haviam criticado nem ligeiramente a reencarnação enlouquecida de Simón Bolívar.

Enquanto os ouvintes convalesciam do espanto, a ofensiva concentrou-se nos que resistem a chicanas constitucionais forjadas para perpetuar o inquilinato de Chávez no Palácio Miraflores. "Por que ninguém se queixa quando a Margareth Thatcher fica tanto tempo no poder?", quis saber. "E o Felipe González, o François Mitterrand, o Helmuth Kohl?". Um repórter ponderou que "são situações distintas": como se aprende no colégio, há diferenças consideráveis entre monarquias parlamentaristas, repúblicas que adotam o parlamentarismo puro e outras que confiam a chefia do governo ao primeiro-ministro sem reduzir o presidente a figura decorativa.

"Não tem nada de distinto", irritou-se o homem que, por ter driblado os estudos, não conhece esses assuntos nem de vista. "O que importa não é o regime, é o exercício do poder". Reduzido à sua essência, o falatório delirante era um recado ao Brasil: o presidente está louco por um terceiro mandato. E topa - se assim Deus mandar e se essa for a vontade do povo - passar a vida inteira no poder.

Faltou um Juan Carlos para recomendar-lhe que parasse de dizer bobagens. Faltou um José Luis Zapatero para ensinar ao onisciente de araque que existem diferenças abissais entre genuínas democracias e falsificações cucarachas. Faltou, sobretudo, uma voz que gritasse a verdade perturbadora: há quase cinco anos, o Brasil é governado por um homem que seria reprovado no mais singelo concurso público que incluísse uma prova de conhecimentos gerais.

Essa verdade se desdobra em outras duas. Primeira: nunca houve um presidente tão visceralmente ignorante. Segunda: ele é a cara do Brasil que o escolheu. Milhões de eleitores hoje se sentem dispensados de ler, estudar, pensar. O pastor não precisou de nada disso para chegar lá. Bastaram a intuição e a esperteza. Cumpre ao rebanho segui-lo.

O país está submerso na Era da Mediocridade. Enquanto não voltar à tona, Lula será o homem certo no lugar certo.

terça-feira, novembro 20, 2007

Assim começam as ditaduras

Logo após o ministro Mangabeira Unger assumir a Secretaria de Ações de Longo Prazo e trazer para sua subordinação o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), previ neste espaço editorial o risco de aparelhamento ideológico da instituição. Não era exercício de quiromancia, pois a independência científica do Ipea sempre incomodou o governo petista. A exoneração de quatro dos seus mais capacitados pesquisadores confirmou a suposição e pode ser interpretada como o passo inicial para enquadrar uma instituição que foi criada no governo militar para pensar o desenvolvimento do Brasil e nem durante o regime de exceção sofreu tamanha violência.

O presidente do Ipea, Marcio Pochmann, declarou estar indignado com as “interpretações” lançadas pela mídia nacional de que as demissões teriam um caráter de purgação ideológica. Perfeitamente, é um direito dele, mas a forma e a motivação como se verificou o desligamento dos estudiosos tem a marca da perseguição política. Pochmann afirmou ao jornal O Globo que pretende reestruturar o Ipea, explicação vaga que só reforça a “interpretação” de aparelhamento petista de uma das poucas instituições que funcionam bem no Brasil.

Ao contrário do pensamento corrente entre os grandes economistas brasileiros de que o Estado nacional é paquidérmico e perdulário, Pochmann o considera raquítico. O presidente do Ipea é um economista parado no tempo e pleno de devaneios fora de moda. Acredita, por exemplo, que falta ao Brasil “passado revolucionário”, imagina que o País é “prisioneiro das elites” e tem como certo, olhem a estultice, que o “desaburguesamento” da classe média e a “desproletarização” dos trabalhadores podem unir as duas classes sociais em torno de um projeto de revolução. Como se vê, Zumbi está vivo e Lênin muito bem representado.

Para se ter noção da independência do Ipea, basta citar que o instituto sempre contrariou a bisonha e falaciosa idéia das causas sociais da violência sustentada pelo governo Lula para ter razão à imobilidade da União em relação à segurança pública. Em vários estudos demonstrou que a criminalidade teria quase uma centena de determinantes, sendo a pobreza uma das razões concorrentes. Pesquisas do Ipea sobre a eficácia do gasto público, os efetivos resultados das políticas sociais e a crise previdenciária brasileira fazem parte de um conjunto de verdades que o governo Lula não quer ouvir e por isso foi classificado como desvio de finalidade do instituto, uma vez que se trata de “análise de conjuntura” quando a função do Ipea é cuidar do longo prazo.

O argumento não convence e reforça a desconfiança de que a gestão do senhor Pochmann está orientada para converter o Ipea em instância de homologação das ações do governo central. Em vez de realizar estudos sérios e criteriosos que visam orientar as ações econômicas do governo, a instituição passaria a pesquisar o elogio às políticas petistas. Sob o ponto de vista científico, o adestramento ideológico do Ipea é uma temeridade para um País que produz tão pouco conhecimento e tem na instituição uma ilha de excelência respeitada internacionalmente e que tanto serviu ao Brasil nestes 43 anos de existência.

Já em relação à atitude política do governo a situação é mais grave, pois reforça a crescente disposição autoritária do petismo de enquadrar as instituições. A decisão ocorre em um momento delicado, quando as encenações sobre a pretensão de um terceiro mandato para o presidente Lula ameaçam a frágil democracia brasileira, principalmente depois que o próprio mandatário do País prestou solidariedade explícita ao bonapartismo moreno de Hugo Chávez. Pode parecer exagero, mas é assim que começam as ditaduras. Espero que o senhor Marcio Pochmann, quando for dar explicações ao Senado, nos convença do contrário.

Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO)

A resistência a Chávez

Quando mandou o ministro do Interior comunicar que o governo venezuelano não autorizará a realização de manifestações de rua - leia-se, de estudantes contrários à Constituição liberticida que a Assembléia acaba de aprovar, ad referendum do eleitorado venezuelano - que possam degenerar em violência, o caudilho Hugo Chávez nada mais fez que manipular grosseiramente os fatos, como é seu costume. Há cerca de um mês ele vinha tolerando passeatas de estudantes para pressionar o governo a adiar, por pelo menos dois meses, o referendo, marcado para 2 de dezembro, que decidirá o futuro constitucional do país.

Acontece que o movimento liderado pelos universitários assumiu proporções que assustaram Chávez. E assim os estudantes, que antes ele chamava de "filhinhos de papai", passaram a ser "lacaios do império", "fascistas" e "traidores". Pior que isso, as milícias bolivarianas - que são disciplinadas e obedientes - passaram a agredir os estudantes e a invadir campus universitários. Houve casos em que os milicianos atacaram os estudantes protegidos pelos escudos da tropa de choque que deveria manter a ordem. Em pelo menos três ocasiões manifestantes foram feridos a tiros - e um dos pistoleiros, fotografado com a arma na mão, era um deputado chavista.

Se Hugo Chávez estivesse preocupado com a ordem pública, refrearia os seus violentos seguidores. Mas o fato é que os "filhinhos de papai" se organizaram e estão mobilizando a opinião pública contra a Constituição que "legitimará" a ditadura perpétua do coronel golpista. O movimento surgiu espontaneamente na Universidade Central, a maior do país, e logo se espalhou pelas outras universidades de Caracas e das principais cidades da Venezuela. Não está vinculado aos partidos carcomidos que infelicitaram o país e, como diz um dirigente estudantil, "somos um movimento sem ideologia de esquerda ou direita; nos unimos pelos direitos humanos".

Mas os estudantes não estão sós nem o chavismo é um bloco monolítico. Oito parlamentares do Partido pela Democracia Social (Podemos) tornaram-se, durante o processo de aprovação da Constituição, uma pedra no sapato de Chávez. Numericamente, eles quase nada são numa Assembléia formada por 179 parlamentares - todos integrantes do chavismo, já que as oposições não concorreram nas eleições de 2005. Mas eles se tornaram um símbolo da resistência aos golpes de Chávez desde que se recusaram a dissolver o Podemos para se integrar no Partido Socialista Unido da Venezuela, que o caudilho criou. A partir daí passaram a ser tratados como "traidores". E, quando se colocaram contra a nova Constituição liberticida de Hugo Chávez, descobriram que, na Venezuela do caudilho, a dissidência é tratada como se delito fosse. Esse pequeno grupo enfrentou o rolo compressor ditatorial e usou a tribuna parlamentar para denunciar o abuso - e, com isso, conquistou o respeito de parcela ponderável da opinião pública.

Outra respeitada voz que se ergue contra o estupro constitucional é a do general Raúl Baduel, ministro da Defesa de Chávez até julho passado, que deixou o governo por não concordar com o novo golpe do coronel. Foi ele quem garantiu a volta ao poder de Chávez, em 2002, quando um golpe o apeou da presidência. Hoje, Baduel usa o mesmo argumento de cinco anos atrás: repúdio a qualquer tipo de golpe de Estado - e é assim que classifica a mudança constitucional "fraudulenta" patrocinada por Chávez.

Baduel tem exortado publicamente o povo venezuelano a rejeitar, por meios democráticos, a imposição da ditadura constitucional de Chávez. Os eleitores, diz ele, não podem aprovar uma constituição que acaba com os direitos de livre escolha de seus governantes e de propriedade. Mas a resistência só será vitoriosa, adverte, se os líderes dos diferentes movimentos de oposição se unirem em torno do objetivo comum: rejeitar a Constituição no referendo.

Pesquisas de opinião mostram que 70% da população se opõe à nova constituição. Mas a parcela majoritária está dividida ao meio, entre os que querem votar não e os que querem se abster. Há dois anos, a tese da abstenção prevaleceu e Chávez passou a controlar uma Assembléia democraticamente eleita, com as conseqüências conhecidas. Se em dezembro os venezuelanos voltarem a se omitir, estarão abdicando expressamente de suas liberdades.
Editorial Estadão

segunda-feira, novembro 19, 2007

Três lições inesquecíveis

por Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 15 de novembro de 2007


O espetáculo reconfortante da humilhação pública do sr. Hugo Chávez foi um dos mais instrutivos das últimas semanas. Com ele aprendemos três lições: sobre o que é democracia, sobre o que é um rei e sobre como funciona (ou não funciona) a cabeça de um revolucionário. A primeira delas devemos ao presidente José Luis Zapatero, a segunda a Juan Carlos de Bourbon, a terceira ao próprio sr. Chávez.

(1) Ao exigir o respeito devido ao seu antecessor José Maria Aznar, que ali fôra ofendido por um orador insolente, o sr. Zapatero mostrou a diferença – que nem sempre há, mas deveria haver -- entre esquerda democrática e esquerda revolucionária. Esta última acredita que seus projetos sociais são tão sublimes que fazem dela “o primeiro escalão da espécie humana”, como dizia Che Guevara, condição que a autoriza a ignorar solenemente os deveres morais e legais que pesam sobre as pessoas comuns e a investe do direito de mentir, trapacear, roubar e matar ilimitadamente em nome das belezas imaginárias de um futuro hipotético. Já a esquerda democrática, consciente da fragilidade das idéias humanas, pode lutar pelos seus projetos com entusiasmo, mas sabe que eles valem menos do que a regra do jogo em que concorrem com os do adversário. Para o revolucionário, só o que importa é modificar a sociedade – se não a natureza humana -- de maneira integral e irreversível, passando por cima de tudo e de todos. O democrata, de direita ou de esquerda, sabe que nenhuma mudança introduzida por um governo é tão inquestionavelmente boa que deva a priori estar vacinada contra a possibilidade de que o governo seguinte a reverta. Zapatero mostrou que, na ordem democrática, ninguém tem a última palavra.

(2) Um rei não é um governante. É o comandante vitalício das Forças Armadas, o garantidor da autoridade dos governos sucessivos, o guardião de uma ordem que permanece enquanto os políticos passam. Com sua inesperada intervenção, o rei Juan Carlos não entrou no mérito do assunto em debate. Apenas garantiu, contra a insolência de um monólogo ditatorial histérico, o direito do seu chefe de governo à palavra. Não faltarão na mídia brasileira desinformantes cínicos o bastante para tentar impingir ao leitor um relato invertido, fazendo de Chávez o indiozinho indefeso, oprimido pela prepotência do colonizador. Mas a seqüência das imagens mostra claramente que foi Chávez o primeiro a oprimir o interlocutor, só se detendo, atônito, ante a entrada em cena de uma personalidade mais forte. Se as palavras dessa personalidade foram exemplarmente abruptas e cortantes, isso só mostra que não é próprio da função real tagarelar, mas tapar a boca dos tagarelas que se arrogam o monopólio da fala.

(3) Quanto ao sr. Hugo Chávez, fazendo diante da reprimenda aquela expressão inconfundível de perplexidade e medo, mostrou algo que há anos venho dizendo: todos esses líderes revolucionários, a começar por Fidel Castro, pelos chefes das Farc e pela multidão dos nossos terroristas indenizados por seus próprios crimes, são indivíduos fracos, covardes, frouxos, bons para atirar em manifestantes desarmados ou para matar pelas costas adversários desprevenidos, mas incapazes de qualquer ato de genuína coragem, que por definição é sempre um ato solitário. Valentes diante dos holofotes ou fortalecidos pela proteção de uma rede internacional de cúmplices, tão logo se vêem abandonados à própria sorte só o que sabem fazer é implorar como Che Guevara: “Não me matem! Não me matem!” Mostra-me os teus heróis e eu te direi quem és.

sábado, novembro 17, 2007

Chávez, o Napoleão de circo
Diogo Mainardi

"Entre 1998 e 2006, a taxa de homicídios em
Caracas subiu 68%. No estado de Táchira, no
mesmo período, o aumento foi de 418%. Esse
é o maior legado chavista, essa é a verdade.
Sem que seja preciso mover céus e terras
para prová-la. Basta consultar os números
do governo venezuelano"

Mata-se tanto na Venezuela que Hugo Chávez já está matando até os fantasmas de 200 anos atrás. Simon Bolívar morreu de tuberculose. Hugo Chávez afirmou que isso é mentira. Para ele, Simon Bolívar foi assassinado. Como um Marty McFly bolivariano, Hugo Chávez fez uma viagem no tempo, no carro cafajeste de um cientista aloprado, e passou a modificar o passado. Ele disse:

– Se for preciso mover céus e terras para provar a verdade, eu o farei.

A verdade é outra. Ninguém assassinou Simon Bolívar. Quem morre assassinado na Venezuela é a sua gente. Aquela mesma gente que, em grande parte, apóia Hugo Chávez. Nos últimos anos, durante o regime chavista, Caracas tornou-se a cidade mais violenta da América Latina. Tem 107 assassinatos para cada 100.000 habitantes. Ganha do Recife. Ganha de Maceió. Olha que é duro ganhar do Recife e de Maceió. O ano de 2006 foi o mais sangrento da história da Venezuela. E 2007 está sendo ainda pior. Nos nove primeiros meses do ano, houve 9 568 assassinatos no país, 852 a mais do que no mesmo período de 2006. Pegue a calculadora. Regra de três. Resultado: ocorreu um aumento de 9,7% no número de assassinatos de um ano para o outro. Entre 1998 e 2006, a taxa de homicídios em Caracas subiu 68%. No estado de Táchira, o aumento foi de 418%. Esse é o maior legado chavista, essa é a verdade. Sem que seja preciso mover céus e terras para prová-la. Sem que seja preciso viajar no tempo. Basta consultar os números do governo venezuelano.

Eu sei que é aborrecido basear argumentos em estatísticas. Mas é o único jeito de fugir da asnice cucaracha que está fazendo a América Latina retroagir ainda mais na história. Quando o rei Juan Carlos mandou Hugo Chávez calar a boca, Fidel Castro classificou o embate como um "Waterloo ideológico". Nesse Waterloo ideológico, eu me sinto como um Fabrizio del Dongo bananeiro, perdido no campo de batalha, contando os milhares de mortos de cada lado. Comigo é assim: de De Volta para o Futuro a um romance de Stendhal em menos de dois parágrafos. No caso da Venezuela, segundo os dados oficiais, houve 12.257 assassinatos em 2006. No caso do Brasil, houve 44.663 assassinatos. Praticamente o mesmo número de mortos que na batalha de Waterloo. O Brasil tem um Waterloo por ano. No rastro do napoleonismo circense de Hugo Chávez e Lula, só há cadáveres. Na Venezuela chavista, assim como no Brasil lulista, as idéias mais regressivas insuflam a mortandade. Onde está Wellington?

Álvaro Vargas Llosa buscou a origem antropológica do atraso da América Latina. Ele a identificou no fanatismo absolutista das culturas pré-colombianas. Para ele, a gente nunca conseguiu se libertar daquele germe asteca que nos empurra para o coletivismo, para a pilhagem, para o cativeiro, para o sacrifício humano, para a degola, para a barbárie. A gente nunca conseguiu fazer nosso indiozinho internalizado calar a boca.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Obviedades temíveis!

Olavo de Carvalho

A esta altura já se tornou óbvio que mesmo alguns dos mais ferrenhos acusadores da corrupção governamental estão antes interessados em salvar a imagem do PT do que em descobrir a verdade. Já disse dezenas de vezes e repito: a esquerda organizada - não o PT sozinho, mas a articulação dos partidos pertencentes ao Foro de São Paulo - é mais poderosa que o Parlamento, mais poderosa que o empresariado, mais poderosa que a Justiça, mais poderosa que a Igreja, mais poderosa que a mídia, mais poderosa que as Forças Armadas. Ninguém tem meios de puni-la, faça ela o que fizer. O Estado brasileiro, para ela, é apenas matéria dúctil da qual ela se servirá a seu belprazer, moldando-a e remoldando-a à sua imagem e semelhança, no instante em que quiser, no estilo em que quiser, sem suscitar senão reclamações isoladas, débeis e impotentes.

O simples fato de que seus opositores se limitem a imputações de detalhe, sem coragem ou capacidade para denunciar o esquema ideológico e estratégico por trás de tudo, já é a prova mais contundente de que eles estão derrotados, submissos, agarrando-se a subterfúgios fúteis para não ter de enxergar a extensão da tragédia em que uma persistente covardia os mergulhou. Disputam no varejo porque sabem que, no atacado, já perderam. E não falo só do Brasil: o continente latino-americano, com exceção da Colômbia, do Chile e dos pequenos países da América Central, já está sob o domínio comunista e não sairá ileso dessa brincadeira, como nenhum povo submetido a experiência similar jamais saiu. Desde que os setores mais vitalmente interessados na sobrevivência da democracia capitalista caíram no engodo do "fim do comunismo" e reprimiram em si próprios toda veleidade de anticomunismo, estavam virtualmente mortos e enterrados. A começar pelos grão-senhores da mídia, coelhinhos assustados, trêmulos ante os chefetes comunistas que eles próprios nomearam e ante os bancos oficiais que prestam socorro a suas empresas periclitantes. A sorte do continente latino-americano está decidida: o futuro chama-se União das Repúblicas Socialistas da América Latina. A profecia de Fidel Castro, lançada na IV Assembléia do Foro de São Paulo, está em vias de se realizar plenamente: o movimento comunista internacional já está reconquistando na América Latina tudo o que perdeu no Leste Europeu. Com uma diferença: no Leste Europeu ele avançou sobre cadáveres de heróis e mártires; na América Latina vai deslizar suavemente sobre a pasta amorfa da pusilanimidade, da omissão e do colaboracionismo.

E não se iludam com uma intervenção salvadora dos EUA. A ascensão do comunismo na América Latina é do mais alto interesse da esquerda chique americana que aqui representa a nata do poder econômico e, na escala mundial, a vanguarda intelectual e financeira do globalismo. É verdade que aqui essa gente enfrenta uma resistência feroz dos conservadores e nacionalistas, mas estes começaram a lutar muito tarde, só na década de 70, ao passo que a esquerda já dominava os círculos de elite, as universidades, as diversões públicas e a grande mídia desde os anos 30. Hoje os esquerdistas são os donos das verbas oficiais de ajuda ao Terceiro Mundo, que, junto com o dinheiro das fundações multibilionárias, fluem para os movimentos revolucionários e são negados a tudo o que seja ou pareça "de direita". Experimentem. Tirem a prova. Façam um projeto inspirado em valores judaico-cristãos, na defesa dos direitos individuais e da economia de mercado, e tentem obter ajuda de alguma instituição governamental ou megafundação americana. Na melhor das hipóteses, receberão evasivas educadas. Depois inventem alguma tolice alegando "combate às desigualdades", abortismo, feminismo, direitos gays, etc.: os cofres se abrirão generosamente.

É claro que aqui existe muita gente contra isso, é claro que os conservadores têm hoje o apoio da maioria da população, é claro que uma redescoberta dos valores americanos tradicionais tem criado dificuldades excepcionais para a elite esquerdista, mas ainda há pela frente uma luta de muitas décadas antes que isso possa se refletir numa mudança efetiva da política internacional americana. Mesmo no Oriente Médio, onde o plano Bush de espalhar a democracia entre os povos islâmicos vem alcançando sucessos espetaculares - reconhecidos até no Brasil por um esquerdista doente como Caio Blinder -, o apoio interno ao presidente é continuamente boicotado por meio de campanhas de propaganda, mentirosas até à alucinação, que arriscam abortar a ação americana e devolver o Iraque à quadrilha de Saddam Hussein. Como, nessas condições, poderiam os EUA intervir na América Latina? Se a própria esquerda alardeia como realidade iminente o que é de fato uma impossibilidade flagrante, é porque sabe utilizar o duplo efeito, estimulante e tranqüilizante, da propaganda enganosa: inocular medo e ódio nos corações de nacionalistas sonsos (militares especialmente), anestesiar empresários idiotas infundindo-lhes uma esperança insensata.

Mas talvez a insensatez maior dos antipetistas seja a confiança que têm no PSDB. Esse partido pertence à Internacional Socialista, foi responsável durante o governo Fernando Henrique pela transformação do MST no mais poderoso movimento de massas do continente e pela introdução maciça da propaganda comunista nas escolas. Aceitá-lo como encarnação da "direita" é cair na armadinha verbal do petismo, que demarcou a esquerda moderada como forma extrema de direitismo permitido, criminalizando tudo o mais para assegurar a si próprio o domínio do espectro político inteiro, bloqueando o surgimento de uma autêntica oposição capitalista-democrática.

A esquerda organizada é mais poderosa que o parlamento, mais poderosa que o empresariado, mais poderosa que a Justiça.

O próprio Fernando Henrique, sob as palmas entusiásticas do petista Christovam Buarque, já declarou que seu partido não tem divergências ideológicas ou estratégicas com o PT, que entre eles não há senão miúdas disputas de poder (inevitáveis mesmo dentro de um regime de tipo soviético) e que os objetivos finais de um e de outro são exatamente os mesmos. A malícia pueril brasileira pode enxergar nessa declaração nada mais que uma concessão da boca para fora, um golpe de astúcia caipira. Mas Fernando Henrique não é estúpido o bastante para querer enganar um adversário tarimbado por meio da lisonja barata. Estúpido é o ouvinte que não percebe que o ex-presidente disse apenas uma verdade factual, material, auto-evidente para todos os petistas e tucanos informados.

Petismo e tucanismo correspondem, no microcosmo nacional, ao comunismo e ao socialismo fabiano na escala internacional. O socialismo fabiano é a ideologia orientadora da Comunidade Européia e, em larga medida, da ONU (leiam The European Union Collective, de Christopher Story, Londres, Edward Harle, 2002). Sua idéia básica é instaurar a ditadura socialista - o pleno domínio do Estado sobre todas as iniciativas humanas - não através da revolução, mas de mudanças progressivas na legislação. O símbolo do socialismo fabiano é a tartaruga, designando a lentidão persistente em contraste com a precipitação comunista (durante todas as reuniões de fundação da Comunidade Européia, a mesa diretora ostentou uma tartaruga de louça, trazida pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d'Estaing). Hoje sabe-se que os criadores do socialismo fabiano - Sidney e Beatrice Webb - agiam sob orientação direta do governo soviético, apresentando como alternativa ao comunismo aquilo que era apenas o comunismo agindo por meios mais anestésicos. Passados oito décadas, a divisão de trabalho não mudou. Também não mudaram em nada as briguinhas internas que jogam areia nos olhos da platéia. Quando Fernando Henrique declara que, nas investigações sobre o escândalo do Mensalão, é importante "não destruir o PT", ele sabe o que está dizendo. Trata-se de garantir para o PSDB um lugar melhorzinho no esquema de poder socialista, não de eliminar o esquema enquanto tal.

O tremendo respaldo internacional que esse esquema tem nos círculos globalistas da Europa e dos EUA pode ser medido pela paparicação de Lula por parte da grande mídia americana (arraigadamente anti-Bush), de vários governos europeus e do próprio Fundo Monetário Internacional, que aí no Brasil ninguém parece saber que é um órgão da burocracia globalista, não um baluarte da liberdade econômica como o apresentam os esquerdistas para camuflar a ajuda que recebem dele.

Se há algo que me desgosta e me irrita é ter de abandonar o plano das análises e diagnósticos, onde me movo à vontade, pelo das sugestões práticas que não cabem ao estudioso e sim aos políticos. Odeio dar conselhos. Mas há um que não posso reprimir. É de uma burrice insana tentar combater com acusações pontuais um esquema estratégico abrangente, que inclui desde o envenenamento ideológico das crianças pequenas até vastas redes internacionais de apoio econômico, político, publicitário e militar. Se vocês querem fazer algo de efetivo contra a hegemonia esquerdista, parem de se iludir com a eficácia utópica das meias-medidas, parem de confiar em comissões de inquérito presididas pelos próprios investigados, parem de querer furar com alfinetes uma couraça de elefante. Admitam que, contra uma estratégia comunista de envergadura continental, só uma estratégia anticomunista de idênticas proporções pode alguma coisa. Admitam que só o que os pode salvar é aquilo que vocês mais temem: o enfrentamento ideológico sistemático, abrangente, completo. Assumam a defesa dos valores judaico-cristãos, do modelo ocidental de democracia, das liberdades individuais e declarem em voz alta o nome do inimigo: comunismo. Se vocês têm medo até mesmo de nomear o bicho, como poderão vencê-lo?

Sei que é tarde, é demasiado tarde, para começar uma briga dessas proporções. Mas há algumas coisas que podem ser feitas com meios modestos e de grande eficácia. Uma delas é, admitindo francamente que já não existe no Brasil autoridade superior à esquerda organizada, reconhecer que está na hora de apelar ao julgamento internacional, usando as armas do próprio globalismo contra os seus protegidos locais. Não custa nada algum grupo interessado encaminhar à Organização dos Estados Americanos uma petição requerendo uma comissão investigativa internacional, independente, para averiguar os crimes do PT. Duvido que alguém aí tenha coragem para isso, mas, quando todas as portas se fecham, é preciso lembrar que ainda existem janelas. Direi mais sobre isso nos próximos artigos.

sábado, novembro 10, 2007

Tem algum procurador aí?

Diogo Mainard

"O Brasil é um lugar sem lei. A Itália, pelo menos
nesse ponto, é melhorzinha. A magistratura
continua a escarafunchar os negócios da Telecom
Italia no Brasil e a prender os membros do seu bando"

– Para tratar com um bandido, é preciso outro bandido.

A frase consta do depoimento do chefe do aparato de espionagem da Telecom Italia, Giuliano Tavaroli, ao juiz Giuseppe Gennari, do Tribunal de Milão. Giuliano Tavaroli atribuiu-a a Marco Tronchetti Provera, o maior acionista da empresa. O primeiro bandido, de acordo com o homem da Telecom Italia, seria Daniel Dantas, que infernizava os italianos com seus métodos de faroeste. O segundo bandido seria Naji Nahas, contratado por Marco Tronchetti Provera para dar um metafórico tiro no peito de Daniel Dantas.

O Brasil é um lugar sem lei. A Itália, pelo menos nesse ponto, é melhorzinha. A magistratura milanesa continua a escarafunchar os negócios da Telecom Italia no Brasil e a prender os membros de seu bando. Quem é preso costuma falar. Alguns dias atrás, revelou-se que Naji Nahas recebeu 25,4 milhões de euros da Telecom Italia. Até agora ninguém informou de onde saiu o dinheiro nem para onde ele foi. O que se sabe é que a empresa pagou propina no Brasil, conforme confessaram seus próprios diretores. O que se sabe também é que a maior parte dos pagamentos a Naji Nahas foi realizada entre 2002 e 2003. No detalhe: 7,26 milhões de euros em 2002 e 11,28 milhões de euros em 2003. Lembre-se de que, na época, o euro estava cotado acima de 3 reais. Mas o que realmente importa – muito mais do que o valor – é a data. Em 2002, houve a campanha eleitoral mais cara da história do Brasil. Em 2003, os petistas passaram a correr atabalhoadamente atrás de dinheiro para sustentar os mensaleiros. Pelo que declarou Giuliano Tavaroli ao juiz Giuseppe Gennari, a principal área de influência de Naji Nahas era o Ministério da Fazenda. Eu acrescento dois dados. Primeiro: em 2002, o coordenador da campanha de Lula era Antonio Palocci. Segundo: em 2003, ele assumiu a pasta da Fazenda, podendo contar com os conselhos desinteressados de Delfim Netto, amigo íntimo – de quem? – de Naji Nahas. Talvez Antonio Palocci possa ajudar a esclarecer o elo entre Naji Nahas e o Ministério da Fazenda. Tem algum procurador aí? Apresente-se! Tem algum tucano aí? Xô!

Um dos homens de Giuliano Tavaroli, Marco Bernardini, em depoimento prestado no fim de outubro ao Ministério Público italiano, declarou que, de acordo com seu chefe, alguém conhecido como "Chinês" teria embolsado dinheiro da Telecom Italia. Marco Bernardini chegou até a dizer quem poderia ser o tal "Chinês". Tem algum procurador aí? Ainda estou esperando. O que posso afirmar com certeza é que, nesse interminável spaghetti western trotskista, em que os italianos viram um bandido em duelo com o outro, um bandido comprando o outro, o lulismo entrou com todos os seus pistoleiros. E o melhor de tudo é que eles deixaram um rastro.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Soberba

por Onyx Lorenzoni

A batalha do governo pela prorrogação da CPMF, conhecida como imposto do cheque, não se resume apenas à tentativa de tornar permanente um imposto que nasceu para ser provisório.

Ela servirá como teste para outra prorrogação: a do mandato do presidente Lula. Caso seja aprovada no Senado, mesmo depois de enorme desgaste, como aconteceu na Câmara, a CPMF se transformará na locomotiva que rebocará o comboio do terceiro mandato, movida pelos R$ 160 bilhões que a CPMF arrecadará até 2010. O dinheiro que deveria melhorar o sistema público de saúde turbinará a saúde política do PT e de seus aliados.

A maior evidência de que o PT tentará de tudo para emplacar o terceiro mandato é o surgimento do movimento quero-quero na Câmara, capitaneado por deputados da base, um dos quais amigo íntimo do presidente da República. Dentro de alguns dias devem apresentar Proposta de Emenda à Constituição abrindo caminho para o terceiro mandado. O raciocínio deles é simples: se ganham a batalha CPMF contra a oposição, a classe média e boa parte do empresariado, por que não tentar emplacar mais quatro anos para o presidente? Por que não impor esse casuísmo, essa excrescência? Afinal, já há o exemplo de Hugo Chávez aqui ao lado, e outro vizinho, o argentino Néstor Kirchner, prepara-se para passar a faixa para Cristina, sua mulher, e para continuar morando na Casa Rosada.

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Do pedestal de herói, Lula passará à vala comum reservada aos ditadores
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Desde Getúlio Vargas, que governou 15 anos, oito deles na ditadura do Estado Novo de 1937 com direito a presos políticos e outras vergonhas, uma manobra despudorada como essa não era tentada. Querem fazer o Brasil retroceder 70 anos quebrando o princípio da alternância no poder, um dos pilares da democracia.

Nos últimos cinco anos, o governo Lula e seus aliados conseguiram desmoralizar o Poder Legislativo e agora partem para a desmoralização do Executivo, arquitetando este golpe chamado terceiro mandato. E se vingar o terceiro, por que não tentar o quarto ou o quinto? É lamentável que, após o enorme esforço para a redemocratização do Brasil, através da consolidação de um sistema de eleições livres e diretas, um bando de petistas aloprados, inebriados pelo poder, transformem-se nos cupins da liberdade e da democracia.

Lula tem dito que não quer nem ouvir falar em permanecer no Palácio do Planalto. Jura passar a faixa ao sucessor eleito em 2010 da mesma forma que Fernando Henrique fez com ele. Mas o que o presidente Lula fala não se escreve.

Já foram tantas as promessas não cumpridas, as bravatas, as gafes, que fica difícil acreditar na sinceridade de intenções e palavras.

Ficar no poder tem sido uma tentação irresistível aos companheiros.

A própria personalidade do presidente acabará impulsionando a manobra do grupo dos quero-queros. O maior herói de Lula é ele mesmo que - do alto de sua vaidade sem limites - se julga um predestinado. Tão predestinado e tão candidato de si mesmo que jamais se preocupou em construir uma candidatura capaz de sucedê-lo dentro da normalidade. E a convivência despudoradamente amistosa com ditadores africanos “reeleitos”, para os quais o presidente não mede elogios, certamente foi inspiradora.

Tudo isso é um vexame do qual se darão conta rapidamente a imprensa internacional e os líderes políticos europeus e americanos que hoje vêem Lula com simpatia. Do pedestal de herói, como foi chamado pelo “New York Times”, passará à vala comum reservada a Chávez, Evo Morales e ditadores africanos de quinta categoria, os xodós do Itamaraty.

Será que diante de tamanho retrocesso o Brasil terá alguma chance de integrar o Conselho de Segurança da ONU? A soberba move os queremistas. Eles imaginam aprovar o terceiro mandato na Câmara sem resistência e duvidam da capacidade de mobilização da oposição, da classe média, daqueles que estão fartos de mentiras e casuísmos. Estão iludidos. Vão acabar como os pássaros daquela lenda gaúcha sobre a fuga da sagrada família para o Egito. Perseguidos pelos soldados de Herodes, José, Maria e o menino Jesus se escondiam e pediam silêncio aos bichos. Todos obedeciam, menos o quero-quero. Queria porque queria cantar.

E dizia: Quero! Quero! Quero! E tanto disse que foi amaldiçoado por Nossa Senhora: ficou querendo até hoje.

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ONYX LORENZONI é lider dos Democratas na Câmara dos Deputados.

sábado, novembro 03, 2007

"Não sei se ainda sou PSDB"

Mônica Bergamo


LIMA DUARTE

Em uma cena de "Desejo Proibido", novela das 18h que a Globo estréia nesta segunda, o político Viriato, interpretado por Lima Duarte, faz um gesto obsceno quando promete "fome zero" a seus eleitores. O ator falou à coluna.



FOLHA - Nas chamadas da novela, seu personagem usa a expressão "fome zero" em um discurso, com um gesto obsceno.
LIMA DUARTE - Estava escrito aquilo ali, não tenho nada a ver com o que o personagem disse. Achei engraçado. Era um bife [jargão dos atores para designar um texto longo] muito comprido e só pegaram aquela parte [na edição]. Ele diz: "No meu governo, a segurança será absoluta, o desemprego será aniquilado, e a fome, zero". Estava lá e eu executei.

FOLHA - O que o senhor acha do segundo mandato do presidente Lula?
DUARTE - Olha, a mim não me encantam as sopas populares. Não resolvem, né? O povo gosta e ele vai indo muito bem à custa disso. Mas nós sabemos que é a CPMF que paga isso. Sou eu. Não é legal quando ele se arvora dono disso tudo. Mas tudo bem, as pessoas estão felizes.

FOLHA - Continua ligado ao PSDB [em 1989, no auge da novela "O Salvador da Pátria", estrelada por Lima, o partido cogitou até lançar o ator como candidato a vice-presidente, na chapa de Mário Covas]?
DUARTE - Não, não, já não sou mais tããão definidamente assim, né? É difícil você se situar politicamente, ideologicamente. Não sei se eu ainda sou PSDB, se eu penso PSDB hoje. Está difícil, porque o maravilhoso, numa república democrática e ideal, é você achar um partido que seja o veículo das suas idéias, da sua ideologia, do que você pensa ser justo e nobre e bom. E o que é o PSDB? O partido mais ideológico que tinha era o PT mesmo, mas se perdeu, né?

FOLHA - O que o desencantou no PSDB?
DUARTE - É a ambição de alguns deles, que estão francamente acochambrando porque querem ser candidatos. O José Serra, o próprio Aécio, meu conterrâneo, todos eles que querem disputar a Presidência. Estão mais preocupados com isso do que com seus governos, porque não têm mesmo ideologia. O partido não é ideológico.

O equívoco e o padre

André Petry

O caso do padre Júlio Lancellotti está servindo de pasto para maus bois. O padre denunciou que vinha sendo extorquido por um ex-interno da velha Febem e, de lá para cá, o caldo entornou. O padre já foi acusado de pedofilia, de espancar meninas, de manter relacionamento homossexual pago com o mesmo ex-interno da Febem que supostamente o extorquia, de desviar dinheiro de ONG... Até agora, não se sabe ao certo se o padre é vítima de calúnias ou se os pecados e crimes de uma vida clandestina estão vindo a público.

O caso é que, como Lancellotti é uma legenda no trabalho de proteção aos direitos humanos, a meninos de rua e menores infratores, sua atuação está ocupando o centro do palco. O que deveria estar sob os holofotes não é o trabalho do padre, é seu comportamento: o padre é culpado ou inocente?

Para desmoralizar o respeito aos direitos humanos, o apoio a meninos de rua ou adolescentes infratores, pode-se festejar o caso de Lancellotti. Com isso, é como dizer que a proteção à massa de desamparados é uma cascata demagógica que envolve até padre pedófilo e ladrão. É bom ficar alerta contra a manipulação, mas ela não é nova. Trata-se da corriqueira tática de culpar o mensageiro pela mensagem.

O que chama mais atenção é defender o padre escorando-se em seu trabalho em favor dos desvalidos. No dia 22 de outubro, arcebispos, bispos e sacerdotes fizeram uma nota de solidariedade a Lancellotti. A nota, assinada por três religiosos, entre eles o arcebispo Odilo Scherer, que acaba de ser promovido a cardeal pelo papa Bento XVI, é exemplo primoroso de equívoco.

Na nota, os religiosos dizem que Lancellotti está passando por "momento de provação e sofrimento" em decorrência do "trabalho evangelizador que há décadas realiza, em São Paulo e no Brasil, junto aos mais pobres". Que a atuação do padre "sempre foi uma grande referência para a Igreja e a sociedade". Que é um "sinal do amor misericordioso de Deus junto aos irmãos mais sofridos".

Todas as referências ao trabalho de Lancellotti são verdadeiras, mas a provação e o sofrimento do padre não têm nada a ver com sua atuação pelos pobres. Têm a ver com a suspeita de pedofilia, de violência, de desvio de dinheiro. Os religiosos, movidos pelo corporativismo católico, caíram na mesma mistificação dos que querem culpar o mensageiro pela mensagem.

A obra social do padre não pode servir de muleta para absolvê-lo nem para condená-lo. São coisas distintas. Colocar tudo no mesmo balaio é criar confusão. É um erro tanto absolver o padre (socorrendo-se de sua obra social elogiável) quanto desmoralizar a obra social (socorrendo-se de um padre sob suspeita).

Por trás, há uma disputa ideológica devido aos laços evidentes de Lancellotti com o PT. Há a defesa de um padre petista pelo elogio à sua obra. E há a condenação de um padre e sua obra por ser petista. É pasto para maus bois. Quando se descobriu que um dos mais famosos pediatras de São Paulo, Eugênio Chipkevitch, abusava sexualmente de seus jovens pacientes, a ninguém ocorreu botar a culpa na pediatria.