segunda-feira, janeiro 30, 2006

O que Lula queria dizer e não disse

Era exatamente aquilo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria dizer quando lembrou a 50 reitores de universidades federais (até parece país de primeira) que, em 2007, não estaria mais no Palácio do Planalto. Faltou um convincente advérbio de modo para relativizar interpretações absolutas. Os impacientes por vê-lo pelas costas se adiantaram logo em conclusões sem verossimilhança.
Lula falava a reitores, mas se dirigia com prioridade a ele próprio. Quis deixar claro que, mesmo quando não estivesse mais ali, a educação continuava na ordem do dia e merecia o respeito que nem ele lhe deu. A prioridade foi para a reeleição. O presidente não estava dando adeus à oportunidade de reeleger-se. Nem abanando a oposição sem rumo, que está mais para boiada a ponto de estourar. Numa hora dessas, é deplorável o espetáculo da falta de governo e de oposição. Quando o governo é bom e a oposição tem tutano, faz-se alguma coisa. Na situação oposta, compete à oposição zelar pela legalidade, mesmo com algum farisaísmo. O Brasil não tem conseguido levar adiante, com regularidade, o curso superior de democracia por baixa freqüência às aulas e pouco aproveitamento em História. Em plena era eletrônica os políticos ainda se comunicam mediante pancadas de borduna no chão e, do outro lado, o interlocutor encosta o ouvido na terra para captar a mensagem. Governo e oposição não se entendem mais no dialeto da fumaça, que é de lacrimejar.

Explicação sobre a frase ( ''em 2007 não estarei mais aqui''), só com o autor. Lula carece de bons analistas, sofás fofos e de tempo para preparar o que diz, sem corretor oral. É chegada a hora de cuidar das versões, já que dos fatos se encarregarão os que, na moita, espreitam resultados menos dignos da democracia. A crise do mensalão não revelou sequer um orador. O Brasil tem déficit de oratória maior do que a dívida interna. Ver objetivos golpistas em CPIs, como faz Lula, é passar recibo sem receber a mercadoria. Derrubada de governos tinha, a critério do tempo, razões próprias, hoje impróprias. Lula já viu o suficiente.

Atos falhos do presidente se atenuam com fatos igualmente falhos, pois o presidente tem sido grande produtor da matéria-prima freudiana. Governo mesmo, só o trivial. Ele já está voltando com intenções de votos enquanto a oposição se prepara para a batalha da candidatura doméstica com faca de mesa. Lula tentou, em legítima defesa, pôr-se à sombra de Getúlio Vargas e JK. Viu apenas os louros da CLT sobre a cabeça de Vargas e a imagem de JK, na moldura da indústria automobilística nacional, acenando de dentro do primeiro fusca brasileiro. Morreu de inveja. Os dois ex-presidentes viveram a história fervente da República, segundo a qual quanto mais quente a oposição, melhor para a democracia. Lula se queixa de barriga cheia (a crer nas fotos presidenciais). Nenhum dos dois teve tratamento vip por parte da imprensa, que os tratava com casca e tudo.

Vargas e JK, na versão petista, são artigos de exportação. Chegaram, governaram e saíram debaixo de tempestade institucional. A verdade é que não podiam ser candidatos, e foram. Não podiam vencer, e venceram. Não podiam tomar posse, e tomaram. Não podiam governar, e governaram.Vargas disse que só morto deixaria o Catete, e cumpriu as palavra. JK saiu candidato, mas ficou sem eleição seguinte com os votos na mão. E Lula, a que veio mesmo? Venceu a mais tranqüila eleição da história republicana e deixou a oposição à mingua. Para arrematar o ócio, inaugura hoje uma sub-estação de força no Espírito Santo. Fica devendo inaugurar meio-fio.

Wilson Figueiredo para o JB.

Romaria de esquerda

"A velha esquerda está morta. Surge a esquerda juvenil. Seus romeiros são milhões. Não são inofensivos. Um vácuo metafísico facilita seu proselitismo"

A esquerda juvenil latino-americana reuniu-se na semana passada em Caracas, no Fórum Social Mundial, o maior encontro de socialistas do planeta. Esse fórum é uma romaria de jovens (e de madurões infantilizados) em busca de um sentido para a sua agenda política. Essa gente não pode mais contar com a espiritualidade religiosa que consolou as gerações passadas. Também perdeu a ilusão no racionalismo econômico do marxismo.

A velha esquerda marxista e o moderno capitalismo propunham a mesma coisa no século passado. Ambos propunham dar o máximo de satisfação ao ser humano. A diferença estava nos métodos. A economia de mercado partia da liberdade individual para criar um sistema que produzisse o máximo de conforto em bens e serviços. O comunismo argumentava que o modelo mais eficiente para chegar à abundância era o planejamento econômico centralizado. Seria preciso começar com uma ditadura, mas isso era irrelevante. No fim, o comunismo proporcionaria mais felicidade para todos.

A economia de mercado ganhou. Em todos os países que adotaram o socialismo (metade do mundo era socialista há poucas décadas), o projeto original desandou em regimes totalitários e pobreza. Sem exceção. O comunismo matou mais de l00 milhões de pessoas. As que escaparam ilesas acabaram na fila do racionamento. Surpresa! A velha esquerda está morta, mas, de seus escombros, surge uma esquerda juvenil revigorada.

Em primeiro lugar, os socialistas do bermudão abandonaram a racionalidade econômica em que se baseou o marxismo. Afinal, já havia ficado claro que fazer contas só serve para desmoralizar ainda mais a utopia do igualitarismo. Em compensação, o projeto esquerdista voltou a incorporar idealizações de pensadores socialistas que antecederam Marx, como a "fraternidade", a "solidariedade", a "vida em comunidade". São idealizações que podem ter apelo num mundo que perdeu o sentido de transcendência para a vida.

A economia de mercado é o melhor sistema apenas para satisfazer as necessidades materiais do ser humano. As necessidades metafísicas não são um problema essencial do projeto capitalista. Para a moderna sociedade industrial e tecnológica, questões como religião, filosofia política, impulso à filantropia ou preferências estéticas são escolhas ligadas à esfera individual, nada que o sistema forneça coletivamente. Perfeito do ponto de vista racional. Aí está, no entanto, a maior fragilidade da sociedade capitalista. A racionalidade não é um atributo das massas. Apenas uma minoria de pessoas tem escala intelectual suficiente para manter vida espiritual por conta própria.

Os socialistas que estiveram no Fórum Social Mundial não se definem claramente em termos ideológicos. Explicam vagamente que combatem a sociedade de consumo, o agronegócio, o neoliberalismo, a globalização, o imperialismo. Não podem dizer a verdade. Seus inimigos são, na realidade, a economia de mercado e sua expressão política, a democracia. São milhões. São antidemocráticos. Não são inofensivos. Um vácuo metafísico facilita seu proselitismo.
Tales Alvarenga para Veja.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

O Estado morreu, viva o Estado

DAVOS - Pobre América Latina. Anda, anda, experimenta tudo a que tem direito e até aquilo a que não deveria ter direito, mas não sai do lugar. Tem sido didático, embora triste, nos 15 anos que acompanho os encontros do Fórum Econômico Mundial, ver os (des)caminhos do subcontinente, Brasil incluído.
Houve de tudo, desde a entronização do mercado como resposta para todos os problemas da região até, neste ano, a volta a papai Estado depois que se descobriu (tardiamente) o óbvio: tudo o que a adoração cega do mercado produziu foi o olvido da América Latina, atropelada por China e Índia.
Sintomático que, ontem, Ernesto Zedillo Ponce de León, o presidente mexicano que adorou o mercado durante seu período de governo, tenha redescoberto o Estado ao fazer uma avaliação dos motivos que levaram a América Latina ao ostracismo.
Primeiro, claro, Zedillo reclamou que a América Latina ainda "não abraçou mais decididamente a economia de mercado". Mas logo emendou: "Não haverá economia de mercado sem um Estado mais forte".
O "Estado mais forte" de Zedillo deve ser capaz, ao contrário do passado, em que era "autoritário, mas não forte", de desempenhar suas "funções básicas", entre as quais citou assegurar o respeito às regras da lei, a segurança pública e os direitos de propriedade, mas também "os bens públicos que não podem ser fornecidos pelo setor privado, até por definição".
Na boca de um ultraliberal como Zedillo, é um tremendo avanço (ou tremendo retrocesso, dependendo do seu gosto, leitor). Mas é também o reconhecimento de qual é hoje o "talk of the town", no caso Davos: "Antes, globalização era a palavra. Hoje é política, é o papel do Estado", resume José Miguel Insulza, socialista chileno, ministro de Ricardo Lagos (queridinho do povo de Davos) e, hoje, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos.
Clovis Rossi

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Mais juízo, doutor

O que faz o país que não mostra a Márcio Thomaz Bastos que os códigos legais e éticos valem também para o ministro da Justiça?, perguntaria Nelson Rodrigues. Primeiro, o criminalista promovido a conselheiro do rei rasgou o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil. Agora, tem espancado o Código Penal. Os colegas bacharéis permaneceram em silêncio. O Ministério Público ainda não se dispôs a agir.
Bastos atropelou o código da OAB no começo do ano passado, quando usou o poder do seu gabinete para vingar-se dos policiais federais que capturaram o publicitário Duda Mendonça numa rinha de briga de galos no Rio. Duda ficou preso uma noite. Os policiais foram todos transferidos para paragens distantes.

Bastos garantiu que não tivera nada a ver com isso. Mas ele também garantiu, em 2003, que construiria nos três anos seguintes quatro presídios de segurança máxima. Não construiu nenhum.

Em junho do ano passado, o criminalista baixou outra vez no ministro, acionado para montar a linha de defesa das criaturas do Pântano do Planalto. Foi ele quem forjou a fantasia: a quadrilha formada por pelintras federais, figurões do PT e comparsas dos partidos de aluguel nada fizera de tão feio.

A versão esculpida por Bastos é tão verdadeira quanto uma cédula de R$ 13. Apesar das incontáveis provas em contrário, a versão marciana refuta a evidência de que uma quadrilha articulou a maior roubalheira da história. Nunca houve uma quadrilha do mensalão. Aliás, nem o mensalão existiu.

O engodo, enunciado pela primeira vez na patética entrevista de Lula na França, seria recitado pelos vigaristas Marcos Valério e Delúbio Soares, além de outros gatunos. Nenhum deles fora além do velho e bom caixa dois. Talvez anestesiados pela espantosa sucessão de escândalos, nem os advogados chiaram. E Bastos pareceu acreditar que seu cartão de visitas equivale a uma carteirinha de impune.

Até recentemente, Márcio era um problema da OAB. Ingressou na esfera do Ministério Público ao atropelar o artigo 319 do Código Penal, que trata do crime de prevaricação: ''Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa em lei''.

Bastos vem prevaricando animadamente desde que se incumbiu de livrar Duda Mendonça de outra enrascada. No choroso depoimento à CPI dos Correios, o marqueteiro do reino afirmou que abrira uma conta no exterior por imposição de Marcos Valério.

Sem a conta no BankBoston de Miami (Dusseldorf é o nome dela), não haveria pagamento pelos serviços prestados ao PT. Duda imaginava que a performance no Congresso o levaria para longe da tempestade. Acabou no olho do furacão.

Ao constatar que a Dusseldorf era uma estrada de mão dupla no lamaçal dolarizado, a CPI solicitou a autoridades americanas o envio da documentação vinculada à malandragem bancária. Chegou primeiro a dupla formada pelo ministro da Justiça e por Wanine Lima, coordenadora do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional.

A papelada repousa há semanas nos domínios do ministro, sob a vigilância da Receita Federal. O ministro se recusa a entregar os documentos à CPI, ''pode haver vazamento de informações, o que irrita os americanos'', alega. Curiosamente, recomendou à CPI que busque os papéis em Miami. Os enviados podem perder a viagem.

Wanine nada quer recuperar. Bastos não quer justiça. Quer prestígio. Pode virar ministro do Supremo.
AUGUSTO NUNES para o JBOnline

O homem-bomba

As tantas voltas dadas, sobretudo ontem, em torno do vai-não-vai do ministro Palocci à CPI dos Bingos terminaram por esclarecer, involuntariamente, as esquisitas alegações que condicionavam o horário do seu depoimento a um dia e hora convenientes à Bolsa.
A recusa de qualquer terça-feira argumentava que, assim no começo da semana, a inquirição poderia refletir-se "no mercado" por dias seguidos. Tidas as quartas-feiras (e olhe lá) como dia de sessão deliberativa na Câmara, o ministro a saltava para chegar ao mais conveniente: quinta-feira, e com início só ao fim da tarde, depois que o cassino da Bolsa encerrasse suas atividade e não se expusesse a reflexos da inquirição.
Argumentação, já à primeira vista, muito suspeita. Implicava o reconhecimento, pelo próprio Palocci, de que, ao responder sobre negócios à sua volta, quando prefeito de Ribeirão Preto e talvez no seu gabinete atual, corria o risco de abalar a Bolsa. Quem sabe de Palocci é Palocci, embora alguns dos seus assessores de antes e de agora também possam saber dele, mas declarar-se homem-bomba não combina com sua esperteza maneirosa.
Deu-se que os ACMs ficaram ontem aflitos com a sobreposição, hoje, do interrogatório de Palocci e o aniversário do neto ACM, esperado logo mais para apagar as velinhas em Salvador, na festança comandada pelo avô ACM. Foram necessárias reuniões senatoriais, discussões pefelistas e entendimentos com a Fazenda, para concluir se era possível adiar o depoimento do ministro.
Em vez de adiada, a sessão foi antecipada. A vê-la transferida para terça-feira, Palocci preferiu-a às 10h de hoje. E os seus cuidados com a Bolsa? O depoimento matinal coincide em cheio com a abertura e a continuação das transações do "mercado financeiro".
Ora, a Bolsa. As razões e desrazões deste ou daquele dia são outras, e esclareceram-se. A terça-feira não convinha a Palocci porque é dia de complementação das chegadas de parlamentares a Brasília, dia de casa cheia no Congresso, boa parte espicaçada nas bases para mostrar-se ativa. A quinta-feira preferida por Palocci já é dia de Congresso apagado, com a revoada que começa de manhã. No final da tarde, então, ou "depois de encerrada a Bolsa", o Congresso caberia em uma sala de dentista. E o horário seria péssimo para os vigilantes de televisão. Não pôde ser à tarde, que o avô ACM vai estar na Bahia, de manhã também já encontra a maioria a caminho do aeroporto.
Que Bolsa, que nada. Mas, com ou sem ela, o homem-bomba está tranqüilizado pelas promessas de simpatia feitas por senadores da oposição. Eles não querem arriscar, neste ano eleitoral, as doações de banqueiros e outros que têm milhões e bilhões de motivos para ser gratos a Palocci.
Jânio de Freitas para a FSP

terça-feira, janeiro 17, 2006

O coro tem medo do antigo regente

O documentário Entreatos, de João Moreira Salles, é um esplêndido resumo da campanha de Lula em 2002. É também a mais perfeita tradução de um esforço eleitoral concebido e comandado por Duda Mendonça. O marqueteiro baiano aparece em poucas cenas. Bastam para escancarar o estilo do artista.
Revisitada neste verão de 2006, é insuperável a que mostra Duda como regente do coro do PT. Aglomerado na platéia, o grupo escalado para cantar ''Lula-lá'' inclui governadores, senadores, deputados, chefões do partido, atores, cantores e intelectuais. Sorriem o sorriso dos vencedores.

Sozinho no palco, Duda comanda o espetáculo. Ora emite ordens em tom enérgico, ora afaga o distinto público com palavras de estímulo. Parece o melhor aluno de Silvio Santos. A turma faz tudo o que o mestre manda com a disciplina das ''colegas de trabalho'' de Silvio. É uma contrafação eleitoral do programa do veterano apresentador de TV.

Começa a cantoria, Duda logo a interrompe. ''O que é isso, gente?'', repreende. ''Vamos soltar a voz''. Exige mais entusiasmo, muita alegria, decibéis no limite do berro. O coro atende. O regente gosta. Agora ensina o que o auditório deve fazer quando entrarem no palco os dois astros convidados. O braço direito precisa erguer-se, na diagonal da cabeça, e mover-se de trás para a frente, simulando o convite: vem com a gente.

O gesto vai sublinhar a gloriosa introdução na ribalta de Ciro Gomes e Anthony Garotinho. Derrotados no primeiro turno da eleição, viraram aliados de Lula. Merecem tratamento vip. A platéia faz bonito. Satisfeito, Duda decide que a cena não será repetida. Todos aplaudem, felizes como colegiais na Disneyworld. ''Esse cara é um gênio'', dizem integrantes do coro. Alguns chamam Duda de ''companheiro''. Desde a assinatura do contrato com o PT, tornara-se um lulista feroz.

Pouco mais de três anos depois daquele outubro, os disciplinados cantores fingem conhecer o regente só de nome. Entre os amnésicos figuram até mesmo os que desfrutaram dos confortos da capitania litorânea de Duda na Bahia. Os visitantes são acomodados em quatro chalés a poucos metros da mansão do hospedeiro. Sobra comida. Sobra bebida.

Mesmo velhos comparsas negam qualquer intimidade com o antigo parceiro. No PT, a ordem é fazer de conta que o publicitário continua encarregado das campanhas de Paulo Maluf. Faz sentido, esclarece a reportagem de capa da revista Veja desta semana. O publicitário Duda Mendonça é apenas bom de bola. Craque é o rio especialista em maracutaias camufladas por contratos espertos.

A fortuna declarada do ex-amigo do rei soma R$ 13 milhões. Descobertas recentes sugerem que a quantia real é extraordinariamente maior. Para juntar tamanha bolada, Duda se valeu de um vasto repertório de truques e ilegalidades: movimentações suspeitíssimas em contas no exterior, lavagem de dinheiro, caixa dois, propinas, tráfico de influência e outras malandragens. Uma folha corrida e tanto.

A enxurrada de denúncias é suficiente para inquietar tarimbados criminosos. Duda exibe a tranqüilidade de quem será aplaudido por todos os santos no dia do Juízo Final. Decerto guarda seus trunfos.

Quando algum caso envolve Duda, o Ministério da Justiça, a Polícia Federal e o Fisco trabalham com exasperante lentidão. Os alegres cantores de 2002 temem que o regente acabe abrindo o bico.

AUGUSTO NUNES

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Entrevista com Jorge Bornhausen

Jorge Bornhausen afirma que Lula não se reelege em 2006

"A sorte foi ter um presidente incompetente com o mundo crescendo. Se o cenário fosse de recessão, estaríamos em convulsão social"


Em quarenta anos de vida pública, o senador Jorge Bornhausen quase nunca esteve na oposição. Mas não deixou de tomar decisões que levaram a grandes reviravoltas. Há 21 anos, rompeu com o governo militar para fundar o PFL. Em 1992, tornou-se ministro para tentar salvar o combalido governo Collor. No ano seguinte, dissolveu o PFL paulista, que era usado como
legenda de aluguel no principal estado do país.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao Planalto, Bornhausen levou o partido para a oposição e ameaçou com expulsão aqueles que queriam aderir ao governo. A fase mais fulgurante de sua carreira começou em 2005, quando se descobriu a bandalha petista do mensalão.
O escândalo amplificou o peso de Bornhausen dentro e fora de seu partido. Ainda assim, o "Alemão", apelido que ganhou por causa da ascendência germânica e do comportamento draconiano, não quer mais disputar eleições.

Aos 68 anos, diz que só volta atrás se for para disputar a sucessão de Lula. Bornhausen recebeu VEJA para um almoço em seu apartamento em Florianópolis. Na entrada, serviu seu prato predileto: espetada de lula. O molusco, bem entendido.

Veja – O PT passou oito anos infernizando o governo tucano-pefelista. Desde 2003, o PFL tem atazanado a vida do PT. O PFL é o PT do PT?
Bornhausen – O PFL fundou a oposição ao Lula. O povo escolheu um presidente da República do PT, um partido que é o oposto ideológico e programático do PFL. Dessa forma, também escolheu o caminho da oposição para nossa legenda. Isso ficou claro para nós na eleição de Lula. Por isso, a executiva do PFL decidiu quatro dias depois do segundo turno adotar uma oposição responsável e fiscalizadora ao governo petista. Nessa época, as pesquisas de opinião indicavam que 84% da
população tinha a expectativa de que o governo daria certo, contra apenas 2% que não acreditavam nele. Eu fiquei entre os 2%.

Veja – Por que tanta certeza?
Bornhausen – Eu achava que faltava ao candidato vencedor experiência administrativa e preocupação em ter conhecimentos mais amplos. Não estou falando de diploma, mas de estudo, de estar inteirado de soluções adotadas por outros países. Eu não acreditava que pudesse dar certo um presidente da República, eleito com essa esperança toda, sem experiência administrativa nem conhecimento para enfrentar o triângulo do atraso que existe no Brasil – a injustiça social, o Estado máximo e o cidadão mínimo. Nossa sorte foi ter um presidente incompetente com o mundo crescendo. Se o cenário fosse de recessão, estaríamos em convulsão social.

Veja – O PFL sempre teve fama de adesista e fisiológico. No governo Lula, pela primeira vez, foi
empurrado para longe do poder. A oposição fez bem ao partido?
Bornhausen – O PFL só foi governo quando ganhou eleições. Nunca fomos governo de carona, como adesistas. Essa história de fisiológico e ser governista desde Pedro Álvares Cabral é preconceito.

Veja – Mas não é desprovida de fundamento.
Bornhausen – Reconheço que tem pitadas verdadeiras no caso do fisiologismo. Muita gente entrou no partido quando fazíamos parte do governo, na tentativa de ocupar espaços. Na oposição, o partido tornou-se respeitado pela sociedade. Esse estágio mudou nossa imagem.

Veja – Há um ano, a direção do PFL chegou a pensar em mudar o nome do partido para se livrar do que o senhor classifica como preconceito. A imagem estava tão desgastada assim?
Bornhausen – Tivemos essa discussão duas vezes, mas o assunto está liquidado. A primeira foi em 1993. Havia um sentimento de que o partido caminhava para a dissolução, apesar de ter governadores importantes. Eu fui contra, porque é a atuação de seus líderes – e não
a legenda – que leva o partido a ficar fora de sintonia com a sociedade. Tínhamos de ver onde estavam nossos erros, fazer um mea-culpa e corrigi-los. Chegamos a atos extremos. Concluímos que, em São Paulo, o PFL era um câncer político. Estava desmoralizado porque só funcionava para vender espaço de rádio e televisão. A única saída foi dissolver o diretório estadual e todos os que estavam estabelecidos nos municípios. A idéia de mudar o nome voltou recentemente, quando começamos a nos afirmar como um partido liberal-social. Mas o comportamento do
PFL como oposição melhorou nossa imagem e apagou completamente essa idéia.

Veja – Todos os partidos deveriam passar uma temporada na oposição?
Bornhausen – Creio que sim. Para o PFL, fez muito bem.
Admito que, no início, foi difícil. O governo Lula partiu para a cooptação e perdemos cerca de 25
deputados para partidos da base aliada do governo. Em boa parte dos casos, foi por efeito da lipoaspiração do mensalão. Só dois deputados deixaram o PFL para entrar no PSDB, que também está na oposição. No fim, ganhamos em qualidade.

Veja – Por que os tucanos fazem uma oposição mais tímida que o PFL?
Bornhausen – O PSDB é um partido social-democrata. O PT se diz um partido socialista, em transição para a social-democracia. Há algumas semelhanças programáticas entre eles. Esse não é o caso do PFL. Além disso, o PSDB, por ter sido governo, sabe que as metralhadoras também se voltam para trás.

Veja – O senhor acredita que o PSDB temia que o PT fizesse uma devassa nos oito anos de administração Fernando Henrique Cardoso?
Bornhausen – Não estou dizendo que foi por medo, mas por cautela, a fim de não atiçar a tendência natural de quem assume fazer uma devassa no governo anterior.
Não creio que se encontrasse nada de mais grave, mas devassas incomodam.

Veja – O PFL é o partido da direita brasileira?
Bornhausen – O PFL é um partido de centro. Por opção, pertencemos à Internacional Democrata de Centro, que defende um liberalismo social. Não pertencemos à Internacional Liberal, que é puramente liberal. Somos de centro porque, de um lado, estamos distantes do
imobilismo conservador. E, do outro, longe do populismo demagógico.

Veja – Por que ninguém assume ser de direita no Brasil?
Bornhausen – A direita não cabe dentro do figurino brasileiro. Temos de considerar nossas condições sociais. Não podemos querer uma economia de mercado pura, sem um Estado regulador. Temos de fazer com que o Estado seja um instrumento a serviço do cidadão,
especialmente o menos favorecido. Sem isso, os pobres não terão oportunidades justas nem seus direitos básicos preservados. Não é a questão de Estado máximo e Estado mínimo, mas do Estado necessário.

Veja – O senhor tem medo de ser classificado como de direita?
Bornhausen – Não se trata de medo, é que não há como existir direita em um país que não é desenvolvido.

Veja – Reformulando: o PFL é o partido mais à direita no espectro político brasileiro?
Bornhausen – Não. Há partidos que se colocam muito mais à direita, como o PP e o PTB. Ambos com intensa convivência com Lula e seu governo. Não somos de direita, mas direitos.

Veja – O que o senhor quis dizer quando se declarou "encantado" com a possibilidade de tornar-se "livre dessa raça pelos próximos trinta anos", ao referir-se aos petistas?
Bornhausen – O termo "raça" não teve nenhuma relação com etnia. Eu me referia aos corruptos ou corruptores que estavam no governo. Mas intelectuais e sindicalistas ideologicamente empedernidos quiseram transformar isso em um ato de racismo e estenderam seu significado como se fosse uma palavra contra a esquerda. O PDT e o PPS são de esquerda e de oposição.
Os criadores do P-SOL foram expulsos do PT. Nada têm a ver com os corruptos. Para tentar me desmoralizar, houve quem produzisse cartazes em que eu aparecia como Hitler. Aquilo, sim, foi um ato de racismo nazi-fascista. A polícia de Brasília identificou os autores dos cartazes. Um líder sindical, Avel de Alencar, e seu irmão, Alvemar, encomendaram esses cartazes ao senhor Marcos Wilson, que era assessor da liderança do PT na Câmara em Brasília.

Veja – O senhor memorizou os nomes e o cargo de cada um dos envolvidos?
Bornhausen – Tenho quarenta anos de vida pública. Respondo e aciono judicialmente todos que me acusam. Vou processá-los por calúnia, injúria e difamação assim que a polícia terminar o inquérito. Eles certamente também serão enquadrados no crime de racismo. Esse Avel, aliás, não é um joão-ninguém. Era freguês de audiências do ministro do Trabalho, Luiz Marinho.

Veja – O PFL se coligará com o PSDB na eleição presidencial?
Bornhausen – Há um ano, optamos pela candidatura própria. Na ocasião, verificamos que havia uma possibilidade de a candidatura Lula, mesmo com um governo medíocre, ser vitoriosa no primeiro turno em razão da inércia da oposição. Procuramos, então, o prefeito do Rio, Cesar Maia, que havia vencido a eleição municipal, e o convidamos para ser pré-candidato. Ele aceitou, com a condição de poder dar uma posição definitiva até março deste ano. Aceitamos a condição.

Veja – Mas o prefeito Cesar Maia já declarou apoio à candidatura do prefeito de São Paulo, José Serra.
Bornhausen – O que Cesar disse foi que Serra e ele têm as mesmas características administrativas. Por isso, se Serra for candidato, ele não será. Essa declaração foi interpretada como apoio e desistência, mas não era isso. Até porque ninguém sabe se Serra será o candidato do PSDB.

Veja – A disputa pela candidatura no PSDB está polarizada entre Serra e o governador paulista,
Geraldo Alckmin. Qual deles tem mais chance na disputa contra Lula?
Bornhausen – Sou do PFL. Deixo os problemas dos tucanos para eles resolverem. A dificuldade que eles têm não é por falta de qualidade de candidatos. Isso é uma grande vantagem.

Veja – Em 2002, o senhor atribuiu ao então candidato Serra a responsabilidade pelas denúncias que destruíram a candidatura de Roseana Sarney à Presidência. O senhor ainda acha que ele foi
responsável pelo episódio?
Bornhausen – Um dia, o Serra pediu para me visitar no Senado. A conversa começou justamente por aí. Ele disse que queria esclarecer sua posição. Respondi que não era preciso, porque não se faz política olhando para o retrovisor. Disse-lhe também que precisávamos fazer política de maneira conjunta, entre dois partidos que são oposição. Dali para a frente, estabelecemos um nível de entendimento cordial, amigo. Serra compreendeu o papel do PFL e a necessidade de
estabelecermos essa parceria. Não tenho divergências com ele.

Veja – Até agora, a senadora Roseana tem apoiado o governo Lula. Há risco de ela vir a apoiar também o candidato do PT na eleição?
Bornhausen – Não. Eu tenho certeza absoluta de que ela vai acompanhar a decisão do nosso partido.

Veja – Mesmo que o PFL se coligue com o PSDB, e que o candidato seja o prefeito José Serra?
Bornhausen – Eu acho que sim, mas vamos conferir.

Veja – Por que a oposição evita investigar o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Antonio
Palocci?
Bornhausen – Não sou daqueles que acham que Palocci deva ser poupado e não estou falando dos episódios que ocorreram quando ele foi prefeito de Ribeirão Preto.
Esses já estão sendo investigados pelos promotores paulistas. O problema é que algumas das principais denúncias de corrupção deste governo atingem órgãos subordinados a ele, como o IRB, a Casa da Moeda, a Caixa Econômica e o Banco do Brasil. Além disso, ele fez um gerenciamento medíocre da economia brasileira. Não o defendo nem como gerente da economia nem no que diz respeito à questão ética. No PSDB, há uma visão diferente. Acham que é melhor com Palocci do que com outro. Não penso assim. A política econômica do governo não mudará se o ministro da Fazenda for outro, porque ela é comandada pelo Banco Central.

Veja – E quanto ao presidente?
Bornhausen – Lula adotou a política do "eu não sabia", na qual ninguém acredita. Participei de muitos governos. No governo Collor, fui o equivalente ao Ministro da Casa Civil. Sei que o presidente da República é sempre um homem bem informado. Essa esperteza não levará Lula a lugar nenhum, a não ser à reprovação popular.

Veja – Quais serão as principais tarefas do próximo presidente?
Bornhausen – Haverá uma grande mudança na política a partir de 2007. Apenas seis ou sete legendas sobreviverão depois que for aplicada a cláusula de desempenho eleitoral, que exige que os partidos tenham, pelo menos, 5% das cadeiras na Câmara Federal e no mínimo 2% em nove estados. É uma mudança grande o suficiente para permitir que façamos a reforma política nos primeiros seis meses de governo do próximo presidente. E só posso dizer uma coisa: esse presidente não será o Lula, porque ele não ganhará a eleição.

Veja – O senhor acha que tem condições de garantir isso?
Bornhausen – Pode escrever.

Veja – O senhor está considerando a hipótese de Lula não concorrer à reeleição?
Bornhausen – Digamos que esse cenário só tem 20% de chance de se realizar. Mas, se Lula não concorrer, teremos uma reprise da eleição de 1989, quando todos os partidos lançaram candidatura própria. Nesse caso, o PSDB deverá estar no segundo turno de qualquer forma. Todos os outros disputarão a segunda vaga. É um quadro preocupante porque abre espaço para um aventureiro.

:: Felipe Patury e Marcelo Carneiro - Veja

domingo, janeiro 08, 2006

O céu é o limite

João Ubaldo Ribeiro


Vejamos. Sim, muita coisa a comentar. Que é que está mesmo anotado aqui? Não escrevo à mão e, quando escrevo, não entendo nada no outro dia, já tenho direito a pelo menos um grau honorário de médico. “Primeira-dama: Nel mezzo del Cammin”, que diabo tem a ver Dante com a primeira-dama? No meio do caminho... Ah, sim, claro. No meio do caminho de sua vida, a nossa primeira-dama recebeu passaporte italiano. Temos alguma coisa a ver com isso? Segundo li, a primeira-dama tirou passaporte italiano para si e para os filhos, “para um caso de necessidade”. Justo, justo, nunca se sabe. Mais uma vez, damos um belo exemplo de pioneirismo, pois devemos ser o único país onde a esposa do presidente pegou uma cidadaniazinha extra, para o caso de necessidade.
Não conheço a lei italiana e não sei se agora, querendo, a primeira-dama pode transformar seu ilustre cônjuge em cidadão italiano também. Casou com italiana, italiano será. Deve ser possível, ainda mais se tratando de um povo sentimental como o italiano. E o caso de necessidade? Bem, sempre pode ser que o presidente se desgoste com o Brasil, depois de fazer o maior governo da história “deste país” (promovido recentemente da condição de “esse país”) e parta para presidir a Itália. Falando como ele fala, deve fazer sucesso, ainda mais que lá o presidente não governa, mais ou menos como atualmente aqui. Quem governa é o primeiro-ministro, de que no momento andamos meio em falta, mas pode ser também um italiano, na condição de oriundo, o dr. Palocci.

Não creio, contudo, que venhamos a ter essa sorte, até porque certamente haverá algumas formalidades para a concessão de cidadania tão especial quanto a de um presidente, como, por exemplo, passar por uma entrevista. Aí, apesar de seu talento oratório, o presidente pode falhar. Não por nada de desabonador, porque será muito simpático, envergará trajes típicos napolitanos, dirá que torce pelo time da casa em que cidade estiver e prometerá o que o mandarem prometer, como aqui. Mas é que o presidente, como nas suas entrevistas aqui, dirá que não sabe de nada nem cabe ao presidente saber de nada, só cabe presidir, ou seja viajar, inaugurar coisas que preferivelmente requeiram que ele acione uma geringonça qualquer e bravatear inanidades em linguagem pós-neandertalesca. Saber mesmo de alguma coisa, notadamente do que aconteceu e acontece antes e durante seu mandato, ele não vai saber, nós todos vimos como ele não sabe de nada. Nem mesmo se vai concorrer à reeleição. Ele só sabe, ou imagina saber, que a gente é besta e todo mundo nasceu ontem, embora eu ouse lembrar que quem se acha sabido ou malandro demais acaba se ferrando. Claro que todo mundo acreditou que ele não sabe mesmo se vai se candidatar e a noção que a gente tem, de que ele gostaria de permanecer o resto da vida lá, é puro preconceito, coisa das elites, complô da imprensa, conspiração da direita, artes da CIA e por aí vai.

Não, não, esse caso da Itália é muito remoto para se pensar nele agora. Vamos ver se, no carnaval, haverá um Baile do Passaporte ou Uma Noite na Toscana, na Granja do Torto. Aí a gente começa a desconfiar de alguma coisa. Antes, é má vontade. Vamos pensar, por exemplo, que é verdade que o PIB foi mixuruca e promete continuar assim. Mas nós pagamos o que devíamos ao FMI, viram, viram? Agora eu quero ver eles falarem mal da gente e deixarem de convidar o presidente para exercitar os tradutores de besteirol da Comunidade Européia e, com certeza, o jornal esloveno de maior circulação fará uma matéria amplamente divulgada aqui, cantando as belezas e encantos do Brasil.

O espetáculo do crescimento já está rolando e vai rolar neste país (vou parar de dizer “Brasil”, a moda presidencial é “este país”, que já fica um pouco mais presente que o antigo “esse país”, mas continua soando meio “eles lá e eu cá”) de uma forma imprevista, o povo brasileiro realmente nunca decepcionou. E, ao apagar das luzes deste ano, descubro que, mais uma vez, este país é alvo de um milagre. Não é que o Estatuto do Idoso abre condições de trabalho para uma imensa massa de velhotes do meu tope e já está começando a fazer isso? Por exemplo, já existem locadoras de idosos (não estou brincando, deu nos jornais), através das quais o freguês aluga os serviços de um idoso, para, por exemplo, entrar na fila preferencial e cuidar rapidamente dos seus compromissos bancários. Imagino que o serviço se estenderá para deficientes e grávidas, com maior expansão ainda do que a prevista.

Chego quase ao delírio, quando penso no destino alcandorado deste país. (Acho que, um dia destes, meio aporrinhado com a entrevista italiana, ele vai conseguir pronunciar, já não digo “Brasil”, que seria pedir demais, mas “nosso país” – aqui, ó, para esses italianos descompreendidos.) Os benefícios serão imediatos, porque o governo criará de pronto a Contribuição Provisória (Permanente) sobre Locação de Idosos, Grávidas, Deficientes e Congêneres. Isso terá imediatos efeitos sobre o superávit primário, que ninguém sabe direito o que é mas é obviamente sagrado. É bem verdade que o brasileiro não se emenda e a economia informal vai acabar se enquistando nesse grande nicho econômico. Eu mesmo, idoso em folha, estalando ainda, vou fazer uns biquinhos nas portas dos bancos. E, quem sabe, posso até me tornar o personal idoso de algum abonado. Terei que ficar de olho na repressão que virá e, com toda a certeza, reservar uma verba que, neste país, é muito útil para lidar com algumas autoridades, a verba não contabilizada, contribuição maiúscula dos atuais líderes para dar nome ao desairoso “por fora”. Vamos comemorar, inventariar as nossas bênçãos. Até mesmo a de que, neste país da pizza, o presidente é ítalo-brasileiro.

domingo, janeiro 01, 2006

Escalada autoritária

CESAR MAIA

Como em todos os inícios de ano, tenho sido procurado por presidentes e diretores internacionais de corporações financeiras para falar sobre a conjuntura brasileira. Curiosamente, neste ano, os três que me procuraram fizeram a mesma pergunta: O que seria o governo Lula num segundo mandato? Nessa pergunta está implícita a dúvida sobre as intenções últimas do governo Lula, sua verdadeira natureza. Os empresários e a mídia sobrevalorizam o fator econômico e, com isso, não conseguem perceber adequadamente os fatores causais, que são os fatores políticos. Mas o mercado capta esses fatores, numa rede de interações imperceptíveis a olho nu, e os "precifica" num "risco Lula", que explica a taxa de juros, por exemplo.

No boxe, como nas mágicas de salão, o sucesso depende da capacidade de desviar a atenção para um movimento, enquanto se realiza o outro que se quer. A estabilidade da moeda é exemplo. Faz-se o óbvio e se vende como bom comportamento. Enquanto o distinto público se distrai, assiste-se no Brasil a uma impressionante escalada autoritária:
intervenção nas agências reguladoras;
as tentativas de criação dos conselhos de jornalismo e de audiovisual no controle das TVs e do cinema;
concentração e centralização fiscais;
o controle das universidades;
a construção de uma rede interna ao governo de militantes de confiança do Palácio do Planalto;
a tentativa de interferência na independência do Ministério Público;
a busca por politizar o STF;
a quase intervenção na Câmara dos Deputados, salva pela reação dos parlamentares, seguida da sua desmoralização como fator do baixo clero;
a intervenção nos partidos, desmontando como nunca a proporcionalidade saída das urnas de 2002;
a asfixia financeira dos Estados e municípios, produzindo uma dependência direta de Brasília;
a desestabilização no campo, tornando inseguro o direito de propriedade;
a antecipação dos dados do IBGE;
o uso abusivo das medidas provisórias, como os decretos-lei da ditadura;
etc.

O ato de governar se tornou secundário, hoje, no Brasil. Há um claro déficit de governança. Tanto faz. O jogo do poder é que governa. No setor externo, procura sinalizar que sua natureza não mudou. É verdade. Um sinal que a cada dia é mais percebido.
O Brasil não assinou a resolução do Conselho de Segurança da ONU criticando a presença de tropas sírias no Líbano.
O "chavismo" é cada vez mais exaltado.
Não é difícil uma escalada autoritária dentro da lei.
Se os conselhos que eu citei tivessem sido aprovados, a imprensa já estaria sob controle.
E as agências caminham nessa direção.
Chávez deu o exemplo de como dar golpes dentro da lei.

O quadro fiscal do país assusta. No último dia de janeiro, por determinação da Lei de Responsabilidade Fiscal, são publicados no "Diário Oficial" dos Estados e municípios os dados relativos ao ano anterior -no caso, de 2004. O quadro mais importante é aquele que compara os restos a pagar -processados e não processados- com as disponibilidades financeiras existentes. Quando essa relação é negativa, diz-se que há insuficiência financeira. Pois bem,
a insuficiência financeira dos Estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais supera os R$ 3 bilhões.
A do Paraná supera os R$ 2 bilhões.
A do Estado do Rio de Janeiro e a a da Prefeitura de São Paulo chegam perto dos R$ 2 bilhões.
E não se pode dizer que os governadores têm sido irresponsáveis.

O que há por trás da gestão fiscal federal pode ser percebido pela expansão do gasto, vis-à-vis uma ampliação inusitada da carga tributária desde a transição, em dezembro de 2002. Pergunta-se por que. Para quê? Talvez o quadro pós-eleitoral da Prefeitura de São Paulo -inimaginável antes- possa explicar. Os governadores de São Paulo e Minas, num claro registro de preocupação com o regime federado, falam abertamente na necessidade de um novo pacto federativo. Outro elemento característico dos regimes autoritários é a orgia do gasto com propaganda. Nunca se viu tamanho desgoverno com os recursos públicos. Estima-se, incluindo as promoções, que esse valor tenha superado os R$ 2 bilhões em 2004.

Há alguns dias foi apresentado o projeto da nova Lei Sindical. Uma leitura cuidadosa -escoimando os pontos positivos que obedecem à lógica do boxeador e do mágico- mostra que se caminha para uma inevitável centralização sindical em torno da CUT e uma problemática: mobilidade restrita do mercado de trabalho, via interveniência dessa central sindical, num modelo ainda discreto de controle do fator trabalho, que, a prazo, pode ser parecido com o de Cuba.

A escalada autoritária mostra um quadro de insegurança jurídica, elemento decisivo para a atração ou não de capitais externos. A matéria publicada e conhecida de muitos, a respeito das relações do PT e seu governo com as Farc colombianas, só aponta os riscos que a democracia corre no Brasil. O MST é exemplo.

Esse processo lembra um poema de Brecht sobre a escalada nazista na Alemanha: enquanto estava longe, tanto fazia. Um dia chegou na sua casa. Cada dia, no Brasil, está mais próximo de todos. É só olhar com atenção. E deixar de lado as bobagens improvisadas do presidente Lula.

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Cesar Epitácio Maia, 59, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro.
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